TÁVOLA, Artur da. Muito pessoal. In: TÁVOLA, Artur da. Mevitevendo. 7. ed. Rio de Janeiro: PGL-Comunicação, 1981. p. 23 [22-23].
A meditação perdeu toda a dignidade de sua forma; ridicularizou-se o cerimonial e a atitude solene daquele que reflete e não se poderia continuar a suportar um homem sábio ao velho estilo. Pensamos depressa, pensamos pelo caminho, em plena marcha, no meio de negócios de toda espécie, mesmo quando se trate de pensar nas coisas mais sérias; basta-nos apenas um pouco de preparação e até mesmo pouco silêncio: - é como se nossa cabeça contivesse uma máquina em movimento constante, que continuasse trabalhando mesmo nas condições mais impróprias para o pensamento. Outrora, quando alguém queria pensar - era realmente uma coisa excepcional!; era visto tornar-se mais calmo e preparar sua idéia [sic]: contraía o rosto como se fosse para uma oração e parava de caminhar; alguns ficavam até mesmo imóveis durante horas - apoiados numa só ou nas duas pernas - na rua, quando o pensamento "vinha". Isso era chamado "pensar".
Nietzsche, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006. p. 44-45.
Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai. 4. Desse modo, não temos uma vida breve, mas fazemos com que seja assim. Não somos privados, mas pródigos de vida. Como grandes riquezas, quando chegam às mãos de um mau administrador, em um curto espaço de tempo, se dissipam, mas, se modestas e confiadas a um bom guardião, aumentam com o tempo, assim a existência se prolonga por um largo período para o que sabe dela usufruir.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Tradução de Lúcia Sá Rabello, Ellen Itanajara Neves Vranas, Gabriel Nocchi Macedo. Porto Alegre: L&PM, 2013. (Coleção L&PM POCKET, v. 548). p. 26.
A filosofia é conhecimento teórico puro, por isso tem como principal função traçar uma nítida linha demarcatória entre ideologia e ciência. A ideologia tem caráter prático, procura revestir a realidade com certos valores, transformá-la; mas é falsa a sua pretensão de representar a realidade como tal. A filosofia tem por meta debelar essa pretensão, estabelecendo uma nítida distinção entre aquilo que é ideológico e o que é científico. Mas, para obter esse resultado, deve atuar em um campo onde o científico e o ideológico estão misturados: e este é o campo das ciências atuais, "exploradas" (como dizia Althusser) pelas filosofias religiosas, idealistas e espiritualistas, que não tomam as ciências pelo que são mas usam a sua existência, seus limites e sua dificuldade de crescimento (batizada como "crises") como prova ou garantia de "valores extra-científicos", que mantêm de pé a sociedade de classes e os seus conflitos.
ABBAGNANO, Nicola. A sabedoria da filosofia: problemas da nossa vida. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991. [Coleção Tempo e Religião]. p. 143.
Não há porque julgues ser grande a nossa divergência [entre Sêneca e Epicuro]. Aquilo que é visado como único objetivo recebe das duas correntes filosóficas o mesmo parecer, isto é, o desdém pelas injúrias e para os insultos, coisas que eu denomino sombras e sugestões de ofensas. Aliás, para o menosprezo delas não é necessário ser sábio. Basta o bom senso para dizer a si mesmo: "Isto me acontece merecido ou imerecidamente? Se merecido, não é agravo e sim justiça. Se imerecido, o vexame da injustiça recai sobre quem praticou".
SÊNECA. A constância do sábio. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Escala, 2007. p. 64.
CIDADÃO COSMONAL
Meu coração é o coração do mundo.
Todos os homens são meus pais e filhos,
trago nos pés os pés dos andarilhos...
Nas mãos, a eternidade dum segundo.
Íons tocando piano e horas do profundo
meditar... Nas setas do olhar: o brilho
cruzando o sideral como um rastilho
de astro que parte para um voo mais fundo.
Somente um quark e toda humanidade,
partícula astral da ancestralidade
nos glóbulos, nos átomos, moléculas.
Meu coração é o coração da vida
amanhecendo a noite, a despedida,
pulsando o cosmo milenar das células.
LIMA, Solidade. Cidadão cosmonal. In: As lâminas do tarô & os 12 trabalhos de Hércules. LIMA, Solidade. São Paulo: PoloBooks, 2016. p. 88.
COMEÇO POR ME IDENTIFICAR, eu sou um cachorro. Que não vai responder a nenhuma pergunta, mesmo porque não sei as respostas, sou um cachorro e basta. Tantas raças vieram desaguar em mim como afluentes de pequenos rios se perdendo e se encontrando no tempo e no acaso, mas qual dessas raças acabou por vigorar na soma, isto eu não sei dizer. Melhor assim. Fico na superfície sem indagar da raiz, agora não. Aqui onde estou posso passar quase despercebido em meio de outros que também levam os crachás dependurados no pescoço como rótulos das garrafas de uísque. Que ninguém lê com atenção, estão todos muito ocupados para se interessar de verdade por um próximo que é único e múltiplo apesar da identidade.
TELLES, Lygia Fagundes. O crachá nos dentes. In: TELLES, Lygia Fagundes. A noite mais escura e mais eu. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1998. p. 51 [49-54].
A PROSA DO MUNDO E O DEDAL DE AREIA
Espadachim das sombras multivárias,
há que cuidar dos minotauros da psique.
Eis que a verdade é multifacetada
e o mais, sombra de enigmas.
A deusa nua tem cheiro de jasmim
e a razão trescala a alho-porro.
BRASILEIRO, Antonio. A prosa do mundo e o dedal de areia. In: BRASILEIRO, Antonio. Dedal de areia. Rio de Janeiro. Garamond, 2006. p. 31.
Aquele que, com respaldo de sua racionalidade, atravessa pelas vicissitudes humanas, com ânimo divino, não abre espaço para acolher a injúria.
Pensas tu que só do lado dos homens não possa advir injúria?
Garanto que nem sequer da parte da fortuna, já que essa sempre que se encontra com a virtude, nunca se iguala a ela.
Se mesmo aquela prova máxima, além da qual não subsiste ameaça alguma, seja da parte de leis severas, seja da parte dos senhorios crudelíssimos, onde a fortuna encontra barreiras para seu império, nós a recebemos, de modo plácido e todo conformado, sabendo ser a morte não um mal e que por isso ela deixa de implicar injúria, então, com muito denodo, suportaremos todas as demais contrariedades, danos, dores, afrontas, lutas familiares e separações. Todas essas coisas, ainda que assediem o sábio, não o afogam porque tais ocorrências não o entristecem, mesmo quando agridem com assaltos sucessivos.
Posto que o sábio tolera, com controle, as injúrias oriundas oriundas da fortuna, quanto mais então irá suportar as originadas de homens prepotentes que são meros instrumentos dela.
SÊNECA. A constância do sábio. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Escala, 2007. p. 42.
Por vezes me olho num imponderável espelho e me interrogo: sois parvo? Sim, porque não consigo ficar mudo e imóvel ante as fortunas da inteligência parindo siameses de mestres-salas e porta-bandeiras da idiotia. Em outros termos, contaminado pelos esgares da panaceia nacional, não alcanço comungar com a paralisia confortável sobre braços e cabeças, em mim mesmo identificando a febre da inquietude e reconhecendo que o imobilismo reativo gera capitulações e estas representam o mais rotundo dos fracassos humanos: a renúncia passiva a lutar pelos justos valores da vida digna.
ARAUJO, Jorge de Souza. Lei Seca cheia de bolor. In: ARAUJO, Jorge de Souza. Estupros à razão e outras crônicas da vida vinagre. Itabuna: Via Literarum, 2012. p. 77 [77-79].
A escola mudou radicalmente com a interação social. O zelo messiânico de transformar nossa mente e o nosso ser, que caracterizava os professores e suas práticas pedagógicas nas escolas exclusivamente negras, era coisa do passado. De repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação. Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar. Já não tinha ligação com a luta antirracista. Levados de ônibus a escolas de brancos, logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência, não o desejo ardente de aprender. A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca.
Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegregadas, deixamos para trás um mundo onde professores acreditavam que precisavam de um compromisso político para educar corretamente as crianças negras. De repente, passamos a ter aula com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas. Para as crianças negras, a educação já não tinha a ver com a prática de liberdade. Quando percebi isso, perdi o gosto pela escola. A sala de aula já não era um lugar de prazer ou de êxtase. A escola ainda era um ambiente político, pois éramos obrigados a enfrentar a todo momento os pressupostos racistas dos brancos, de que éramos geneticamente inferiores, menos capacitados que os colegas, até incapazes de aprender. Apesar disso, essa política já não era contra-hegemônica. O tempo todo, estávamos somente respondendo e reagindo aos brancos.
Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não deveria estar ali, me ensinou a diferença entre a educação como prática de liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 11-12.
Três sonetos
I
[A Raul Campos]*
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
*Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913
II
A Praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Porque o amo? Não importa nada. Adiante...
Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar p’ra elas.
Nenhuma d'elas em mim é serena...
De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros, ou as que não há.
Londres (uns cinco meses antes do Opiário) Outubro 1913
III
[A Daisy Mason]
Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos ai de Londres,
Que, embora não o sintas, tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de
Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes
(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar
A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...
(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913
CAMPOS, Álvaro de. Três sonetos. In: PESSOA, Fernando. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 37-39.
Se quisermos construir um mundo humano melhor precisamos afirmar valores que valem por si mesmos e desenvolver uma sabedoria que submeta a economia à política (a serviço do bem-estar dos seres humanos em sociedade) e a política à ética (a realização de valores). Esta estabelece os fins nobres e os meios adequados para uma felicidade possível aos humanos. Nós, na verdade, vivemos no mundo dos meios sem termos definido os fins que dão sentido à história. Esse fato é uma das fontes maiores de perpetuação da crise generalizada que assola a humanidade e sem vislumbrarmos uma saída imediata.
BOFF, Leonardo. A grande transformação: na economia, na política e na ecologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 78.