quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Citação de Retrato de um artista quando jovem, de James Joyce


— Essa raça e esse país e essa vida fizeram de mim quem eu sou, disse. Vou me expressar da maneira como sou.
— Tente ser um de nós, repetiu Davin. No fundo você é um irlandês mas você tem orgulho demais para admitir.
— Meus antepassados jogaram fora essa língua e adotaram outra, respondeu Stephen. Permitiram que um punhado de forasteiros os subjugassem. Você acha que vou pagar com a minha vida e com a minha pessoa as dívidas que contraíram? Por quê?
— Pela nossa liberdade, disse Davin.
— Desde a época de Tone até à de Parnell, disse Stephen, não houve um único homem sincero e honrado que tenha sacrificado a vida e a juventude e as próprias afeições pelos irlandeses sem que mais tarde o tenham vendido ao inimigo ou renegado na hora de maior necessidade ou abandonado em favor de outro. E você ainda me convida para ser um de vocês. Vá para o inferno.
— Essas pessoas morreram por um ideal, Stevie, disse Davin. Acredite, o nosso dia vai chegar.
Stephen, entretido com os pensamentos, manteve-se em silêncio por alguns instantes.
— A alma nasce, afirmou de maneira vaga, em instantes como aqueles que contei para você. É um nascimento lento e obscuro, mais cercado de mistérios do que o nascimento do corpo. Quando a alma de um homem nasce nesse país é necessário prendê-la com redes para que não fuja. Você fala sobre nacionalidade, língua, religião. Se eu puder vou evitar essas redes.
Davin bateu as cinzas do cachimbo.
— Isso é profundo demais para mim, Stevie, disse por fim. Mas a pátria de um homem vem antes de qualquer coisa. A Irlanda acima de tudo, Stevie. Depois você pode ser poeta ou místico se quiser.
— Você sabe o que é a Irlanda?, perguntou Stephen com uma violência fria. A Irlanda é uma porca velha que come as próprias crias.


JOYCE, James. Retrato de um artista quando jovem. Tradução de Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Mediafashion, 2016. (Coleção Folha. Grandes nomes da literatura, v. 8). p. 214-215.

 

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