sexta-feira, 7 de junho de 2024

Citação de Poesia de Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa


 

Três sonetos

I
[A Raul Campos]*
 

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

*Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913


 II

A Praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Porque o amo? Não importa nada. Adiante...

Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar p’ra elas.
Nenhuma d'elas em mim é serena...

De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros, ou as que não há.

Londres (uns cinco meses antes do Opiário) Outubro 1913


III
[A Daisy Mason]


Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos ai de Londres,
Que, embora não o sintas, tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes

(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...

(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913

 

CAMPOS, Álvaro de. Três sonetos. In: PESSOA, Fernando. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 37-39.

Nenhum comentário:

Postar um comentário