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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Citações de Olhos d'água, de Conceição Evaristo


Lumbiá tinha ainda outros truques. Sabia chorar, quando queria. Escolhia uma mesa qualquer, sentava, abaixava a cabeça e se banhava em lágrimas. Sempre começava chorando por safadeza, mas em meio às lágrimas ensaiadas, o choro real, profundo, magoado se confundia. Nas histórias, que inventava nos momentos de choro para comover as pessoas, tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado real da vida dele ou do amigo Gunga se confundia com a invenção do menino. E enquanto chorava o pranto ensaiado para comover os compradores, contava ora sobre a surra que havia levado da mãe, ora pela mercadoria que estava ficando encalhada (e ele precisava retornar para casa com um bom resultado de venda), ou ainda, pelo dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior... E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia se descobrindo realmente triste, tão triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-coração menino.


EVARISTO, Conceição. Lumbiá. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. 1. ed. 21. reimp. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 81-86.


— Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. Vivo implicando com as novelas de minha mãe. Entretanto, sei que ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe que a verdade da telinha é a da ficção. Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras bocas. Lidinha e Biunda tiveram filhos também, meninas. Biunda tem o leite escasso, Lidinha trabalha o dia inteiro. Elas trazem as menininhas para eu alimentar. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...


EVARISTO, Conceição. A gente combinamos de não morrer. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. 1. ed. 21. reimp. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 99-109.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Citação de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley


Os livros e o barulho intenso, as flores e os choques elétricos - na mente infantil esses pares já estavam ligados de forma comprometedora; ao cabo de duzentas repetições da mesma lição, ou de outra parecida, estariam casados indissoluvelmente. O que o homem uniu, a natureza é incapaz de separar.
- Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam de ódio "instintivo" aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânica por toda a vida - o diretor voltou-se para as enfermeiras. - Podem leva-las.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2014. p. 40.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Citação de Do ser ao saber: relatos de experiência de pessoas que vive(ncia)ram a Graduando

 

 
 
A organização, a chamada para o envio de textos, a revisão e a feitura deste livro (e das duas últimas edições do periódico que lhe inspirou) aconteceram em meio a um acontecimento mundial que distanciou fisicamente as pessoas umas das outras, restando-nos a percepção segura do outro, durante muito tempo, por meio da internet, em transmissões de áudio e/ou vídeo por streaming, ou mesmo acesso a essas transmissões sempre que possível. Embora nem todos pudéssemos acessar tais serviços – muito menos com a estrutura e a qualidade necessárias –, fizemos isso e proporcionamos, por meio desses recursos, não raros, salvadores da sensação de solidão, o compartilhamento de nossos pensamentos, de nossa presença e de nossos gestos com a linguagem, principalmente com palavras escritas e faladas. Essas referências coletivas mais utilizadas de nossa linguagem uniram, unem e unirão pessoas em períodos de nossa história, sempre aglutinando parte do que fazemos em nossa geração e que, muitas vezes sem percebermos na medida de nosso próprio olhar, participam da formação de novas gerações e novas perspectivas nos espaços em que nos coube, em que nos cabe e em que nos caberá existir.
O livro que apresentamos é uma composição, como também o são os objetos que, em última análise, motivaram-no. É oportuno dizer “em última análise”, porque o livro marca os 10 anos de atuação da Graduando: entre o ser e o saber, revista acadêmica da graduação em Letras da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na vida de pessoas que a foram incorporando às próprias leituras e nos espaços em que o periódico se fez presente, em textos escritos, em corpos vivos e em ideias propagadas. Ou seja, uma publicação para discentes, estudantes de graduação da área de Letras, completou uma década de publicação ininterrupta de artigos e resenhas, atividade rara quando da época de sua idealização e ainda pouco comum nos espaços e no tempo da publicação deste livro. Também em última análise, o material que corporifica o periódico é o resultado de horas de estudo, reflexão e escrita, momentos de pesquisa que exemplificam a experiência em destaque com a publicação: o exercício necessário do pensamento científico e acadêmico na formação do ser humano no universo da atuação sobre e para a própria vida.

CALIXTO, B. E. M. ; ALMEIDA, Danilo Cerqueira ; BARRETO, J. R. O. ; BATISTA, M. B. ; PEREIRA, V. S. Prefácio. In: CALIXTO, B. E. M. ; ALMEIDA, Danilo Cerqueira ; BARRETO, J. R. O. ; BATISTA, M. B. ; PEREIRA, V. S. Do ser ao saber: relatos de experiência de pessoas que vive(ncia)ram a Graduando. Nova Xavantina, 2021. p. [4-5]. Disponível em: https://www.editorapantanal.com.br/ebooks-capitulo.php?ebook_id=do-ser-ao-saber-relatos-de-experiencia-de-pessoas-que-vivenciaram-a-graduando&ebook_ano=2021&ebook_caps=1&ebook_org=1. Acesso em: 21 set. 2024. DOI: https://doi.org/10.46420/9786581460198.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Citação de Abismo intacto, de Yttérbio Homem de Siqueira

 

 
SALMO DO INSTANTE -V
Ao Dr. Possídio do Nascimento Coelho
e a José Matias Filho

Não esqueças este instante,

é tudo quanto possuis,

é mais forte mesmo

do que tua vida.


É teu espaço, este instante

imperecível e estrelar.

É tudo que tens de eterno:

incide doloroso e grande 

em tua vida. Percorreu

do orco as últimas instâncias.

Não o deixes perecer

entre os milênios

de instantes esmagados.


Ó, não sejas tu somente

uma morte implacável de instantes.


SIQUEIRA, Yttérbio Homem de. Salmo do Instante - V. In: SIQUEIRA, Yttérbio Homem de. Abismo intacto. Rio de Janeiro: José Olympio; Recife: Fundarte, 1983. p. 43.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Citação de Ética para viver melhor: diferentes atitudes para agir corretamente, de C. S. Lewis


O único tipo de santidade que as Escrituras podem perder (pelo menos o Novo Testamento) pela modernização é algo que nunca teve para seus autores e seus leitores. O Novo Testamento não foi obra de arte literária no grego original: não foi escrito em tom solene e eclesiástico, mas na língua falada na porção oriental do Mediterrâneo depois que o grego se tornou língua internacional e, portanto, perdeu a beleza e a sutileza. Vemos o grego sendo usado pelos que não tsm um sentimento real pelas palavras gregas, porque elas não são as que usavam na infância. Seria grego "básico", uma língua sem raízes no solo, uma língua utilitária, comercial e administrativa. Isso nos choca? Mas não deveria acontecer, a não ser no mesmo nivel em que a Encarnação deve nos chocar. A mesma humildade divina que decretou que Deus se tornaria o bebê no seio de uma camponesa, e mais tarde um pregador de rua preso pela polícia romana, determinou, também, que Ele precária em linguagem vulgar, prosaica e não literária. Se você aceita uma parte, tem de aceitar a outra também.


LEWIS, C. S. A Ética dos textos bíblicos. InÉtica para viver melhor: diferentes atitudes para agir corretamente. São Paulo: Planeta, 2017. p. 164-165.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Citação de Teoria da comunicação literária, de Eduardo Portella


Para que o homem [e outros gêneros do ser humano] entre numa relação em uma relação criadora com a realidade é preciso que este relacionamento seja um ato de consciência. E nós diremos porque. É pela simples razão de que não há realidade sem consciência de realidade. A realidade faz e é feita pela consciência. Seremos mais exatos, aliás, se dissermos que a consciência é a própria realidade concentrada no seu princípio de unidade. Mas essa premissa teórica não tem sido tranqüilamente [sic] aeita ou compreendida. Por que? Porque as questões, por parecerem simples, por esconderem a sua complexidade, são tratadas simplificadamente, numa linha de formulação que vai da ingenuidade ao equívoco, passando algumas vezes pela má fé.


PORTELLA, Eduardo. O realismo como estrutura e as ameaças de setorização. In: PORTELLA, Eduardo. Teoria da comunicação literária. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1973. p. 61.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Citação de Mevitevendo, de Artur da Távola (Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros)

 

 
 
Deus é sempre um pouco mais,. Mesmo no menos. Ele é minha procura, nova, a cada encontro. É meu fluxo de vida e não a minha vida. É minha amargura tanto quanto minha alegria, porque está na dimensão do que não tenho mas sei que existe porque Dele me fala o mistério: o doce mistério, da amarga mas perfumada trajetória, átomo da eternidade, fagulha de esperança, a que chamamos vida e atribuímos tanto, quando apenas é um espasmo da carne em forma de ser e susto. E o que é isso para o Absoluto?

TÁVOLA, Artur da. Muito pessoal. In: TÁVOLA, Artur da. Mevitevendo. 7. ed. Rio de Janeiro: PGL-Comunicação, 1981. p. 23 [22-23].

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Citação de A Gaia Ciência, de Nietzsche

 


 

A meditação perdeu toda a dignidade de sua forma; ridicularizou-se o cerimonial e a atitude solene daquele que reflete e não se poderia continuar a suportar um homem sábio ao velho estilo. Pensamos depressa, pensamos pelo caminho, em plena marcha, no meio de negócios de toda espécie, mesmo quando se trate de pensar nas coisas mais sérias; basta-nos apenas um pouco de preparação e até mesmo pouco silêncio: - é  como se nossa cabeça contivesse uma máquina em movimento constante, que continuasse trabalhando mesmo nas condições mais impróprias para o pensamento. Outrora, quando alguém queria pensar - era realmente uma coisa excepcional!; era visto tornar-se mais calmo e preparar sua idéia [sic]: contraía o rosto como se fosse para uma oração e parava de caminhar; alguns ficavam até mesmo imóveis durante horas - apoiados numa só ou nas duas pernas - na rua, quando o pensamento "vinha". Isso era chamado "pensar".  

Nietzsche, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006. p. 44-45.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Citação de Eclesiastes, da Bíblia

 

Eclesiástes 1 


1 Palavras do pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém.
2 Vaidade de vaidades, diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade.
3 Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?
4 Uma geração vai-se, e outra geração vem, mas a terra permanece para sempre.
5 O sol nasce, e o sol se põe, e corre de volta ao seu lugar donde nasce.
6 O vento vai para o sul, e faz o seu giro vai para o norte; volve-se e revolve-se na sua carreira, e retoma os seus circuitos.
7 Todos os ribeiros vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios correm, para ali continuam a correr.
8 Todas as coisas estão cheias de cansaço; ninguém o pode exprimir: os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir.
9 O que tem sido, isso é o que há de ser; e o que se tem feito, isso se tornará a fazer; nada há que seja novo debaixo do sol.
10 Há alguma coisa de que se possa dizer: isto é novo? ela já existiu nos séculos que foram antes de nós.
11 Já não há lembrança das gerações passadas; nem das gerações futuras haverá lembrança entre os que virão depois delas.
12 Eu, o pregador, fui rei sobre Israel em Jerusalém.
13 E apliquei o meu coração a inquirir e a investigar com sabedoria a respeito de tudo quanto se faz debaixo do céu; essa enfadonha ocupação deu Deus aos filhos dos homens para nela se exercitarem.
14 Atentei para todas as obras que se e fazem debaixo do sol; e eis que tudo era vaidade e desejo vão.
15 O que é torto não se pode endireitar; o que falta não se pode enumerar.
16 Falei comigo mesmo, dizendo: Eis que eu me engrandeci, e sobrepujei em sabedoria a todos os que houve antes de mim em Jerusalém; na verdade, tenho tido larga experiência da sabedoria e do conhecimento.
17 E apliquei o coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as loucuras; e vim a saber que também isso era desejo vão.
18 Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta o conhecimento aumenta a tristeza.

BÍBLIA, A. T. Eclesiástes. In: A Bíblia Sagrada: Almeida atualizada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Abbotsford, CAN: Zeiset, 2020. E-book. p. 1379-1380. Ec 1: 1-18.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Citação de Reflexões sobre a vaidade dos homens/ Carta sobre a fortuna, de Mathias Aires

 

 
De maneira incisiva, Mathias Aires começa a tecer a [sic] suas reflexões a partir do trecho bíblico extraído do Eclesiastes: Vanitas vanitatum et omnia vanitas, ou seja, Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Ele vê no centro de suas Reflexões o pensamento do homem não como uma ponta solta da alma humana, mas como objeto que pertence e forma toda idéia do universo. Para o pensador, não há quem esteja imune à vaidade, ele se coloca entre os vaidosos ao ansiar pela publicação de sua própria obra. A vaidade é o fio condutor para que se possa entender todo o comportamento humano. O conceito está ligado diretamente a outros sentimentos, como orgulho, e alcança esferas de pensamento com a compreensão e a fantasia.
Na Carta Sobre [sic] a Fortuna, o autor se vê como um infortunado e responde, em forma de carta, a um desejo do Rei de que ele possua maior fortuna. Entretanto, a resposta incorpora uma longa explanação que confronta merecimento e fortuna. Para, por fim, concluir que ser afortunado na idade em que se encontrava o filósofo, nem seria verdadeira fortuna.

APRESENTAÇÃO. In: AIRES, Mathias. Reflexões sobre a vaidade dos homens/ Carta sobre a fortuna. São Paulo, SP: Escala, 2008. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal). v. 21. p.12-13.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Citação de Poema, de Danilo Cerqueira

Foto: Danilo Cerqueira
Foto: Danilo Cerqueira

 
 
Poema
 
Olho e saio da vida
Com o risco de esfolar o grão
Que cresce no entorno do vago
Com a órbita do homem em vão
 
Grave e leve, semente à vista, pesa e voa!
Infunde no vácuo o seixo molhado
Poço d'água ao sol entoa
Que a certeza da queda é o ocaso...
 
22/08/2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Citação de Qual é a tua obra?, de Mario Sergio Cortella



Nenhum e nenhuma de nós é capaz de fazer tudo certo o tempo todo de todos os modos. Por isso, você só conhece alguém quando sabe que ele erra, e quando ele erra e não desiste. E dizem: ah, é por isso que a gente aprende com os erros? Não, a gente não aprende com os erros. A gente aprende com a correção dos erros. Se a gente aprendesse com os erros, o melhor método pedagógico seria essas bastante. (É bom lembrar que todo cogumelo é comestível. Alguns apenas uma vez).

CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra?: inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. 24. ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 2015. p. 29-30.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Citação de Retrato de um artista quando jovem, de James Joyce


— Essa raça e esse país e essa vida fizeram de mim quem eu sou, disse. Vou me expressar da maneira como sou.
— Tente ser um de nós, repetiu Davin. No fundo você é um irlandês mas você tem orgulho demais para admitir.
— Meus antepassados jogaram fora essa língua e adotaram outra, respondeu Stephen. Permitiram que um punhado de forasteiros os subjugassem. Você acha que vou pagar com a minha vida e com a minha pessoa as dívidas que contraíram? Por quê?
— Pela nossa liberdade, disse Davin.
— Desde a época de Tone até à de Parnell, disse Stephen, não houve um único homem sincero e honrado que tenha sacrificado a vida e a juventude e as próprias afeições pelos irlandeses sem que mais tarde o tenham vendido ao inimigo ou renegado na hora de maior necessidade ou abandonado em favor de outro. E você ainda me convida para ser um de vocês. Vá para o inferno.
— Essas pessoas morreram por um ideal, Stevie, disse Davin. Acredite, o nosso dia vai chegar.
Stephen, entretido com os pensamentos, manteve-se em silêncio por alguns instantes.
— A alma nasce, afirmou de maneira vaga, em instantes como aqueles que contei para você. É um nascimento lento e obscuro, mais cercado de mistérios do que o nascimento do corpo. Quando a alma de um homem nasce nesse país é necessário prendê-la com redes para que não fuja. Você fala sobre nacionalidade, língua, religião. Se eu puder vou evitar essas redes.
Davin bateu as cinzas do cachimbo.
— Isso é profundo demais para mim, Stevie, disse por fim. Mas a pátria de um homem vem antes de qualquer coisa. A Irlanda acima de tudo, Stevie. Depois você pode ser poeta ou místico se quiser.
— Você sabe o que é a Irlanda?, perguntou Stephen com uma violência fria. A Irlanda é uma porca velha que come as próprias crias.


JOYCE, James. Retrato de um artista quando jovem. Tradução de Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Mediafashion, 2016. (Coleção Folha. Grandes nomes da literatura, v. 8). p. 214-215.

 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Citação de Setembro na Feira, de Juarez Bahia


As Melindrosas são mesmo a ufania da Queimadinha, depois do gado. Seu Ia de porta-estandarte, um aprendiz de tipógrafo, desde as damas ao grupo musical se encontram as criaturas mais diferenciadas, os vaqueiros, filhos de coronéis, comerciantes, empregados, mulatos, brancos, pretos — uma completa mistura sob a bandeira amarela, rosa e vermelha, com seu lema impregnado de filosofia: a alegria não tem cor, não tem raça nem religião.

Só o padre Amílcar do Carmo implicava com isso, pois — afirmava-o solenemente —, alegria pode não ter cor nem raça, mas tem religião, a alegria é católica, é cristã e ainda possui a sua moral. E quem, porventura, vier a contestar tal conceito estará sujeito a ir para o inferno, onde já se acha o Lucas do Limão, vulgarmente conhecido como Lucas da Feira, enforcado neste Campo do Gado.

BAHIA, Juarez. Setembro na Feira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 34.
 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Citação de Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, de Néstor Garcia Canclini


 

DA DESCRIÇÃO À EXPLICAÇÃO


Ao reduzir a hierarquia dos conceitos de identidade e heterogeneidade em benefício da hibridação, tiramos o suporte das políticas de homogeneização fundamentalista ou de simples reconhecimento (segregado) da "pluralidade de culturas". Cabe perguntar, então, para onde conduz a hibridação e se serve para reformular a pesquisa intercultural e o projeto de políticas culturais transnacionais e transétnicas, talvez globais.
 

Uma dificuldade para cumprir esses propósitos é que os estudos sobre hibridação costumam limitar-se a descrever misturas interculturais. Mal começamos a avançar, como parte da reconstrução sociocultural do
conceito, para dar-lhe poder explicativo: estudar as processos de hibridação situando-os em relações estruturais de causalidade. E dar-Ihe capacidade hermenêutica: Torná-lo útil para interpretar as relações de sentido que se reconstroem nas misturas.

Se queremos ir além de liberar a análise cultural de seus tropismos fundamentalistas identitários, deveremos situar a hibridação em outra rede de conceitos: por exemplo, contradição, mestiçagem, sincretismo, transculturação e crioulização. Além disso, é necessário vê-la em meio às ambivalências da industrialização e da massificação globalizada dos processos simbólicos e dos conflitos de poder que suscitam.

 

CANCLINI, Néstor Garcia. Introdução à edição de 2001: as culturas híbridas em tempos de globalização. In: CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. Tradução da introdução de Gênese Trindade. 4. ed. 4. reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. p. XXIV-XXV [XVII-XLIII].


quarta-feira, 24 de julho de 2024

Citação de A constância do sábio, de Sêneca

 

 

Não há porque julgues ser grande a nossa divergência [entre Sêneca e Epicuro]. Aquilo que é visado como único objetivo recebe das duas correntes filosóficas o mesmo parecer, isto é, o desdém pelas injúrias e para os insultos, coisas que eu denomino sombras e sugestões de ofensas. Aliás, para o menosprezo delas não é necessário ser sábio. Basta o bom senso para dizer a si mesmo: "Isto me acontece merecido ou imerecidamente? Se merecido, não é agravo e sim justiça. Se imerecido, o vexame da injustiça recai sobre quem praticou".

SÊNECA. A constância do sábio. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Escala, 2007. p. 64.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Citação de As lâminas do tarô & os 12 trabalhos de Hércules, de Solidade Lima

 

 

CIDADÃO COSMONAL

 

Meu coração é o coração do mundo.

Todos os homens são meus pais e filhos,

trago nos pés os pés dos andarilhos...

Nas mãos, a eternidade dum segundo.

 

Íons tocando piano e horas do profundo

meditar... Nas setas do olhar: o brilho

cruzando o sideral como um rastilho

de astro que parte para um voo mais fundo.

 

Somente um quark e toda humanidade, 

partícula astral da ancestralidade

nos glóbulos, nos átomos, moléculas.

 

Meu coração é o coração da vida

amanhecendo a noite, a despedida, 

pulsando o cosmo milenar das células.

 

LIMA, Solidade. Cidadão cosmonal. In: As lâminas do tarô & os 12 trabalhos de Hércules. LIMA, Solidade. São Paulo: PoloBooks, 2016. p. 88.

 


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Citação de A noite escura e mais eu, de Lygia Fagundes Telles

 

COMEÇO POR ME IDENTIFICAR, eu sou um cachorro. Que não vai responder a nenhuma pergunta, mesmo porque não sei as respostas, sou um cachorro e basta. Tantas raças vieram desaguar em mim como afluentes de pequenos rios se perdendo e se encontrando no tempo e no acaso, mas qual dessas raças acabou por vigorar na soma, isto eu não sei dizer. Melhor assim. Fico na superfície sem indagar da raiz, agora não. Aqui onde estou posso passar quase despercebido em meio de outros que também levam os crachás dependurados no pescoço como rótulos das garrafas de uísque. Que ninguém lê com atenção, estão todos muito ocupados para se interessar de verdade por um próximo que é único e múltiplo apesar da identidade.


TELLES, Lygia Fagundes. O crachá nos dentes. In: TELLES, Lygia Fagundes. A noite mais escura e mais eu. 4. ed.  Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1998. p. 51 [49-54].

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Citação de Jó, da Bíblia

 

Jó 28

1 Na verdade, há minas donde se extrai a prata, e também lugar onde se refina o ouro: 
2 O ferro tira-se da terra, e da pedra se funde o cobre. 
3 Os homens põem termo às trevas, e até os últimos confins exploram as pedras na escuridão e nas trevas mais densas. 
4 Abrem um poço de mina longe do lugar onde habitam; são esquecidos pelos viajantes, ficando pendentes longe dos homens, e oscilam de um lado para o outro. 
5 Quanto à terra, dela procede o pão, mas por baixo é revolvida como por fogo. 
6 As suas pedras são o lugar de safiras, e têm pó de ouro. 
7 A ave de rapina não conhece essa vereda, e não a viram os olhos do falcão. 
8 Nunca a pisaram feras altivas, nem o feroz leão passou por ela. 
9 O homem estende a mão contra a pederneira, e revolve os montes desde as suas raízes. 
10 Corta canais nas pedras, e os seus olhos descobrem todas as coisas preciosas. 
11 Ele tapa os veios d’água para que não gotejem; e tira para a luz o que estava escondido. 
12 Mas onde se achará a sabedoria? E onde está o lugar do entendimento? 
13 O homem não lhe conhece o caminho; nem se acha ela na terra dos viventes. 
14 O abismo diz: Não está em mim; e o mar diz: Ela não está comigo. 
15 Não pode ser comprada com ouro fino, nem a peso de prata se trocará. 
16 Nem se pode avaliar em ouro fino de Ofir, nem em pedras preciosas de berilo, ou safira. 
17 Com ela não se pode comparar o ouro ou o vidro; nem se trocara por jóias de ouro fino. 
18 Não se fará menção de coral nem de cristal; porque a aquisição da sabedoria é melhor que a das pérolas. 
19 Não se lhe igualará o topázio da Etiópia, nem se pode comprar por ouro puro. 
20 Donde, pois, vem a sabedoria? Onde está o lugar do entendimento? 
21 Está encoberta aos olhos de todo vivente, e oculta às aves do céu. 
22 O Abadom e a morte dizem: Ouvimos com os nossos ouvidos um rumor dela. 
23 Deus entende o seu caminho, e ele sabe o seu lugar. 
24 Porque ele perscruta até as extremidades da terra, sim, ele vê tudo o que há debaixo do céu. 
25 Quando regulou o peso do vento, e fixou a medida das águas; 
26 quando prescreveu leis para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões; 
27 então viu a sabedoria e a manifestou; estabeleceu-a, e também a esquadrinhou. 
28 E disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e o apartar-se do mal é o entendimento."

BÍBLIA, A. T. Jó. In: A Bíblia Sagrada: Almeida atualizada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Abbotsford, CAN: Zeiset, 2020. E-book. p. 1132-1135. Jo 28: 1-28.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Citação de A política explicada aos nossos filhos, de Myriam Revault D'Allones


 

Desde a mais tenra idade e, sobretudo, desde que entram na escola, vocês tomam conhecimento da vida em sociedade e das suas regras. Num certo sentido, vocês aprendem , sem o saber, as condições da política, que significa o fato de viver e agir em conjunto. Vocês deparam com situações que os preparam para enfrentar questões "políticas": o contato com as diferenças, as injustiças, as desigualdades, a tomada de responsabilidade. Vocês experimentam o que é uma instituição - a escola, o colégio - em que a aprendizagem e a difusão do saber não são estranhas às realidades sociais e políticas. Vocês também confrontam a realidade das discordâncias e o modo pelo qual podem iniciar uma ação coletiva. E compreendem que conversar é bom, que as discussões  não conduzem apenas à violência ou à guerra, mas que às vezes elas permitem evitá-las, quando expomos nossas posições em público, por meio de argumentos e demonstrando respeito pelo outro.

Contudo, vocês também puderam constatar - pois todos repetem isso sem parar - que a política se tornou hoje um objeto de desconfiança, que ela é criticada e desprezada: por exemplo, a política parece incapaz de impedir o aumento do desemprego. Quanto aos políticos, não paramos de criticá-los, e eles frequentemente nos passam uma imagem muito negativa. Existe aí algo muito desconcertante: como uma atividade tão fundamental, que diz respeito à nossa vida em comum, pode causar tanta insatisfação e decepção?

D'ALLONES,  Myriam Revault. A política explicada aos nossos filhos. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 10-11.