quarta-feira, 17 de abril de 2024

Citação de A expedição Montaigne, de Antonio Callado


 
Ieropé estava agora cismando por conta própria, porque sentia que, sem a menor dúvida, alguém soprava nele a música, dizendo a ele que só com muito e muitíssimo tempo é que alguém pode ter a esperança de encontrar o que afinal de contas ninguém perdeu e esteve sempre aí, mas não se vê nem se sente. Ele tinha é que descobrir não como o mundo e as coisas, os bichos e as plantas e os peixes se criam e se encaixam e sim, o que é muito mais simples, como se faz farelo e farinha de uma única coisa, a coisa ruim. Mas mesmo pra isso, Ieropé não se iludisse, ele precisava, devagarinho, ir virando ele mesmo aquilo que a natureza tivesse de mais forte porque os acontecimentos que mais aconteceram provocam e arrastam tantos outros acontecimentos que todos se defendem da extinção ao mesmo tempo: nenhum quer deixar de ter acontecido, desistindo de existir, coisa em que ninguém e nenhuma coisa acha graça nenhuma, como reza a lei que todo o mundo conhece. Achando que seguia e servia a música, o que não deixava de ser verdade, Ieropé irritava, sem saber, a música, que não esperava precisar castigá-lo e fazê-lo saltar tanto, devido ao orgulho e à soberba que ainda habitavam o pajé. É que Ieropé, forçoso é confessar, em sua busca da melhor forma de desatar o existido, partiu pras cabeceiras, pras presunções, procurando, em funda cisma, sorver pelos poros a sumaúma, que é a árvore maior de todas, e o raio, atrás que ele andava da força que nasce quando os dois se encontram, se rasgam e se dilaceram entre p céu e a terra pra fazer a solda do mundo do alto com o mundo das profundezas.

CALLADO, Antonio. A expedição Montaigne. 10. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 [1982]. p. 67-68.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Citação de Ensaios, de Montaigne


Como quer que seja e quaisquer que sejam as inépcias que me passam pela mente, não as esconderei, como não esconderia meu relato se em vez de jovem e belo me representasse calvo e grisalho como o sou, em verdade. Exponho aqui meus sentimentos e opiniões, dou-os como os concebo e não como os concebem os outros; meu único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode, amanhã, ser bem diferente do de hoje, se novas experiências me mudarem. Não tenho autoridade para impor minha maneira de ver, nem o desejo, sabendo-me demasiado mal instruído para instruir os outros.

MONTAIGNE, Michel de. Da educação das crianças. In: MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. 4. ed. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1987. vol. 1, p. 76.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Citação de O Cortiço, de Aluísio Azevedo


Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como que naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea. 

Aquela pobre flor de cortiço, escapando à estupidez do meio em que desabotoou, tinha de ser fatalmente vitima da própria inteligência. À mingua de educação, seu espírito trabalhou à revelia, e atraiçoou-a, obrigando-a a tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça ignorante e viva a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir. 

Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tulipou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens. 

Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?... 

E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força e do seu próprio valor. 

Sorriu. E no seu sorriso já havia garras. 

Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até ai jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cujas fotografias Léonie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranqüilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.

- Ah! homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro.


 AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 139-141.