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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Citação de É preciso lutar!, de Marcia Kupstas

 

 
Existem duas cidades dentro de uma.
Existe aquela que desperta às 6 ou 7 horas da manhã, com os olhos cheios de sono e as pernas cheias de pressa. Aquela que se aperta nos ônibus e trens, que boceja no volante dos automóveis, que tem um horário para o serviço, tem uma aula ou uma prova, que vive dentro de milhares de pessoas pelas ruas, comprando e vendendo, marcando compromissos e virando multidão.
E existe a outra. Aquela que só começa a existir depois que a multidão se vai, depois que as luzes das casas e apartamentos começam a se apagar e o silêncio do sono vai percorrendo as ruas. Essa outra cidade tem ruas vazias de gente e pouco trabalho, poucos carros e um outro morador, aqueles que se apertam nos bares e nas boates, ali sim, locais onde a noite é alegre. Mas, na maior parte, a cidade noturna está silenciosa e escura.
 
KUPSTAS, Marcia. É preciso lutar! 10. ed. São Paulo: FTD, 1992. (Coleção canto jovem). p. 89-90.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Citação de O Guarani, de José de Alencar

 

Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.

O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.

Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.

Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.

Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.

Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.

Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.

Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas.

Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.

Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.

Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado.

O índio saltou sobre o arco, e abateu-a daí a alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flecha, e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante.

Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça, e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado.

O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível.

Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá, e rogando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.

Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.

Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata.

ALENCAR, José de. O Guarani. 21. ed. São Paulo, SP: Ática, 1997. p. 30-31. (Série Bom Livro).

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Citação de Contra os acadêmicos, de Santo Agostinho

 
 
O que nas coisas chamamos de acaso nada mais é que algo cuja razão e causa é secreta; e nada de conveniente ou de inconveniente acontece à parte que não diga respeito e não atinja também ao todo. E a filosofia, à qual estou te convidando, promete demonstrar aos que a amam verdadeiramente a visão das doutrinas mais fecundas, proferidas pelos oráculos, e extremamente distanciadas do intelecto dos profanos.
 
 
AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. (Vozes de Bolso). p. 14.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Citação de Qual é a tua obra?, de Mario Sergio Cortella



Nenhum e nenhuma de nós é capaz de fazer tudo certo o tempo todo de todos os modos. Por isso, você só conhece alguém quando sabe que ele erra, e quando ele erra e não desiste. E dizem: ah, é por isso que a gente aprende com os erros? Não, a gente não aprende com os erros. A gente aprende com a correção dos erros. Se a gente aprendesse com os erros, o melhor método pedagógico seria essas bastante. (É bom lembrar que todo cogumelo é comestível. Alguns apenas uma vez).

CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra?: inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. 24. ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 2015. p. 29-30.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Citação de Retrato de um artista quando jovem, de James Joyce


— Essa raça e esse país e essa vida fizeram de mim quem eu sou, disse. Vou me expressar da maneira como sou.
— Tente ser um de nós, repetiu Davin. No fundo você é um irlandês mas você tem orgulho demais para admitir.
— Meus antepassados jogaram fora essa língua e adotaram outra, respondeu Stephen. Permitiram que um punhado de forasteiros os subjugassem. Você acha que vou pagar com a minha vida e com a minha pessoa as dívidas que contraíram? Por quê?
— Pela nossa liberdade, disse Davin.
— Desde a época de Tone até à de Parnell, disse Stephen, não houve um único homem sincero e honrado que tenha sacrificado a vida e a juventude e as próprias afeições pelos irlandeses sem que mais tarde o tenham vendido ao inimigo ou renegado na hora de maior necessidade ou abandonado em favor de outro. E você ainda me convida para ser um de vocês. Vá para o inferno.
— Essas pessoas morreram por um ideal, Stevie, disse Davin. Acredite, o nosso dia vai chegar.
Stephen, entretido com os pensamentos, manteve-se em silêncio por alguns instantes.
— A alma nasce, afirmou de maneira vaga, em instantes como aqueles que contei para você. É um nascimento lento e obscuro, mais cercado de mistérios do que o nascimento do corpo. Quando a alma de um homem nasce nesse país é necessário prendê-la com redes para que não fuja. Você fala sobre nacionalidade, língua, religião. Se eu puder vou evitar essas redes.
Davin bateu as cinzas do cachimbo.
— Isso é profundo demais para mim, Stevie, disse por fim. Mas a pátria de um homem vem antes de qualquer coisa. A Irlanda acima de tudo, Stevie. Depois você pode ser poeta ou místico se quiser.
— Você sabe o que é a Irlanda?, perguntou Stephen com uma violência fria. A Irlanda é uma porca velha que come as próprias crias.


JOYCE, James. Retrato de um artista quando jovem. Tradução de Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Mediafashion, 2016. (Coleção Folha. Grandes nomes da literatura, v. 8). p. 214-215.

 

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Citação de Estupros à razão e outras crônicas da vida vinagre, de Jorge de Souza Araujo

 


Por vezes me olho num imponderável espelho e me interrogo: sois parvo? Sim, porque não consigo ficar mudo e imóvel ante as fortunas da inteligência parindo siameses de mestres-salas e porta-bandeiras da idiotia. Em outros termos, contaminado pelos esgares da panaceia nacional, não alcanço comungar com a paralisia confortável sobre braços e cabeças, em mim mesmo identificando a febre da inquietude e reconhecendo que o imobilismo reativo gera capitulações e estas representam o mais rotundo dos fracassos humanos: a renúncia passiva a lutar pelos justos valores da vida digna.

ARAUJO, Jorge de Souza. Lei Seca cheia de bolor. In: ARAUJO, Jorge de Souza. Estupros à razão e outras crônicas da vida vinagre. Itabuna: Via Literarum, 2012. p. 77 [77-79].

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Citação de Antologia Poética, de Gregório de Matos

 

 

Moraliza o Poeta nos Ocidentes o Sol e a Inconstância dos bens do Mundo

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

 

MATOS, Gregório de. [Moraliza o Poeta nos Ocidentes o Sol e a Inconstância dos bens do Mundo]. In: MATOS, Gregório de. Antologia poética. 7. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, [1991?]. p. 84.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Citação de Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade, de bell hooks

 

A escola mudou radicalmente com a interação social. O zelo messiânico de transformar nossa mente e o nosso ser, que caracterizava os professores e suas práticas pedagógicas nas escolas exclusivamente negras, era coisa do passado. De repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação. Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar. Já não tinha ligação com a luta antirracista. Levados de ônibus a escolas de brancos, logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência, não o desejo ardente de aprender. A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca.

Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegregadas, deixamos para trás um mundo onde professores acreditavam que precisavam de um compromisso político para educar corretamente as crianças negras. De repente, passamos a ter aula com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas. Para as crianças negras, a educação já não tinha a ver com a prática de liberdade. Quando percebi isso, perdi o gosto pela escola. A sala de aula já não era um lugar de prazer ou de êxtase. A escola ainda era um ambiente político, pois éramos obrigados a enfrentar a todo momento os pressupostos racistas dos brancos, de que éramos geneticamente inferiores, menos capacitados que os colegas, até incapazes de aprender. Apesar disso, essa política já não era contra-hegemônica. O tempo todo, estávamos somente respondendo e reagindo aos brancos.

Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não deveria estar ali, me ensinou a diferença entre a educação como prática de liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação.


HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 11-12.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

 
Os meus "amigos" como sempre acontece, abstiveram-se: nem Luís de Monforte- que tanta vez me protestara a sua amizade - nem Narciso de Amaral, em cujo afeto eu também crera. Nenhum deles, numa palavra, me veio visitar durante o decorrer do meu processo, animar-me. Que a mim, de resto, coisa alguma me animaria.
Porém, no meu advogado de defesa fui achar um verdadeiro amigo. Esqueceu-me o seu nome: apenas me recordo de que era ainda novo e de que a sua fisionomia apresentava uma semelhança notável com a de Luís de Monforte.
Mais tarde, nas audiências, havia de observar igualmente que o juiz que me interrogava se parecia um pouco com o médico que me tinha tratado, havia oito anos, de uma febre cerebral que me levara às portas da morte.
Curioso que o nosso espírito, sabendo abstrair de tudo numa ocasião decisiva, não deixe entanto de frisar pequenos detalhes como estes…
 
SÁ-CARNEIRO. Mário de. A confissão de Lúcio. São Paulo: Escala, [2007]. p. 74-75.

 

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Citação de A grande transformação (...), de Leonardo Boff

 


Se quisermos construir um mundo humano melhor precisamos afirmar valores que valem por si mesmos e desenvolver uma sabedoria que submeta a economia à política (a serviço do bem-estar dos seres humanos em sociedade) e a política à ética (a realização de valores). Esta estabelece os fins nobres e os meios adequados para uma felicidade possível aos humanos. Nós, na verdade, vivemos no mundo dos meios sem termos definido os fins que dão sentido à história. Esse fato é uma das fontes maiores de perpetuação da crise generalizada que assola a humanidade e sem vislumbrarmos uma saída imediata.

BOFF, Leonardo. A grande transformação: na economia, na política e na ecologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 78.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Citação de Eu, um outro, de Imre Kertész

 Uiva o vento úmido, angustiante das tragédias. Abre-se a terra, vem abaixo o céu. As pessoas de repente mudam, desmoronam, envelhecem. O sopro do inferno lhes tira a cor do rosto. Os transeuntes que se vêem [sic] nas ruas são vultos brancos e cinza, cadáveres. As metamorfoses do apocalipse. Na Vérmezõ, ao passar pela estátua de Béla Kun, coberta de estrelas-de-david rabiscadas, de repente entendi que aquilo que na juventude julgava covardia, estupidez, cegueira e - no fundo - a forma quase inconcebivelmente tragicômica do suicídio, na realidade, era o tipo de impotência que se transforma em dignidade. Pois existe algo de digno em finalmente cumprir a ordem brutal do assassino e aceitar friamente ser marcado e massacrado. Existe algo de generoso na comodidade da vítima. Quanto a mim, hoje já desconfio que vou permanecer no meu lugar, quando muito, vou sentir mais nojo. Uma vida longa nos reserva cada vez mais surpresas, surpresas que preparamos para nós mesmos.

 

KERTÉSZ, Imre. Eu, um outro. Tradução de Sandra Nagy. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. p. 12-13.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Citação de Da utilidade e do inconveniente da história para a vida, de Nietzsche


 

Os homens e as épocas que servem a vida, julgando e destruindo o passado, sempre e ao mesmo tempo são perigosos e estão em perigo. De fato, a partir do momento que somos os rebentos de gerações anteriores, somos também os resultados dos erros dessas gerações, de suas paixões, de seus desvios e mesmo de seus crimes. Não é possível livrar-nos completamente dessa corrente. Se condenamos esses desvios pensando que nos desembaraçamos deles, o fato de que deles auferimos nossas origens não se suprime.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Da utilidade e do inconveniente da história para a vida. Tradução de Antônio Carlos Braga, Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2008. p. 46.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Citação de Da utilidade e do inconveniente da história para a vida, de Nietzsche


 

O conhecimento do passado, em todos os tempos, só é desejável quando está a serviço do passado e do presente e não quando enfraquece o presente, quando erradica os germes vivos do futuro. Tudo isso é simples, simples como a verdade e disso fica persuadido aquele mesmo que não tem necessidade que lhe demonstrem historicamente isso.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Da utilidade e do inconveniente da história para a vida. Tradução de Antônio Carlos Braga, Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2008. p. 49.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Em menos tempo do que ontem

 

Em menos tempo do que ontem, até porque estou usando outro recurso para registrar  as palavras hoje, creio que vou escrever menos texto do que nos dois dias anteriores. Isso não deve ser problema, pois mesmo assim estou aqui, com mais vontade do que habilidade, com mais razão do que saber,  com mais de menos do que de mais... 

Deixando esses jogos de palavras de lado, prefiro comentar coisas do dia (e da tarde e da noite) para, delas, partir para questões atemporais... esperanças, esperanças... Hoje finalmente pude correr... correr... correr, fisicamente. Prazer inenarrável, ouvindo música então, melhor ainda. Não, eu não sou desses que se entrega ao corpo de forma mecânica, como máquina que funciona até a exaustão de seus componentes ou que apresenta qualquer defeito pelo uso exagerado. Procuro pensar, entre essa espécie de cansaço satisfatório, sobre coisas importantes para mim, assuntos e questões morais, éticas e sociais. Entre a observação de gestos e corpos ao longo de quase duas horas de exercício, vou meio.que me descobrindo como pessoa, cidadão, homem, ser socialmente constituído, mas que tem um contexto e ambiente condicionante (não determinante) e constante, articuladamente correlacionante, a me e a nos espreitar e tragar para seus domínios de convenções, digamos, específicas.

Esse é o destino dos resistentes: lutar a luta mais vã, como ilustra Drummond com as... Palavras!

Não lutar com as palavras talvez seja fechar os olhos ao seu sinal...

Bons momentos... e fins de tarde... e madrugadas...

 

Feira de Santana, BA, 8 de maio de 2021.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Madrugada

Tempo de minhas palavras

Onde está? Onde estão?

Vejo e sinto esforço apenas

Perto do céu e do vão...




quarta-feira, 24 de abril de 2024

Citação de Um artista da fome, de Franz Kafka

 

Os mais belos cartazes chegaram a ficar sujos e ilegíveis, foram arrancados e a ninguém ocorreu renová-los. A tabuleta com o número dos dias transcorridos desde que havia começado o jejum, que nos primeiros tempos era cuidadosamente mudado todos os dias, há muito tempo era a mesma, pois ao fim de algumas semanas esse pequeno trabalho tinha-se tornado desagradável para o pessoal; e desse modo o jejuador continuou jejuando, como sempre havia desejado, e o fazia sem incômodo, tal como em outra época havia anunciado; mas ninguém contava mais o tempo que passava; ninguém, nem mesmo o próprio jejuador, sabia quantos dias de jejum havia alcançado, e seu coração enchia-se de melancolia. E assim, certa vez, durante aquele tempo, um ocioso se deteve diante de sua jaula e se riu do velho número de dias consignado na tabuleta, parecendo-lhe impossível, e falou de impostura e velhacaria; foi essa a mais estúpida mentira que puderam inventar a indiferença e a malícia inatas, pois não era o jejuador quem enganava, ele trabalhava honradamente, mas era o mundo quem enganava quanto aos seus merecimentos.

KAFKA,  Franz. Um artista da fome. In: KAFKA,  Franz. A metamorfose e Um artista da fome. Tradução de Torrieri Guimarães. Texto sobre autor e obra de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. p. 75-89. p. 87-88.

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Citação de A expedição Montaigne, de Antonio Callado


 
Ieropé estava agora cismando por conta própria, porque sentia que, sem a menor dúvida, alguém soprava nele a música, dizendo a ele que só com muito e muitíssimo tempo é que alguém pode ter a esperança de encontrar o que afinal de contas ninguém perdeu e esteve sempre aí, mas não se vê nem se sente. Ele tinha é que descobrir não como o mundo e as coisas, os bichos e as plantas e os peixes se criam e se encaixam e sim, o que é muito mais simples, como se faz farelo e farinha de uma única coisa, a coisa ruim. Mas mesmo pra isso, Ieropé não se iludisse, ele precisava, devagarinho, ir virando ele mesmo aquilo que a natureza tivesse de mais forte porque os acontecimentos que mais aconteceram provocam e arrastam tantos outros acontecimentos que todos se defendem da extinção ao mesmo tempo: nenhum quer deixar de ter acontecido, desistindo de existir, coisa em que ninguém e nenhuma coisa acha graça nenhuma, como reza a lei que todo o mundo conhece. Achando que seguia e servia a música, o que não deixava de ser verdade, Ieropé irritava, sem saber, a música, que não esperava precisar castigá-lo e fazê-lo saltar tanto, devido ao orgulho e à soberba que ainda habitavam o pajé. É que Ieropé, forçoso é confessar, em sua busca da melhor forma de desatar o existido, partiu pras cabeceiras, pras presunções, procurando, em funda cisma, sorver pelos poros a sumaúma, que é a árvore maior de todas, e o raio, atrás que ele andava da força que nasce quando os dois se encontram, se rasgam e se dilaceram entre p céu e a terra pra fazer a solda do mundo do alto com o mundo das profundezas.

CALLADO, Antonio. A expedição Montaigne. 10. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005 [1982]. p. 67-68.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Citação de Ensaios, de Montaigne


Como quer que seja e quaisquer que sejam as inépcias que me passam pela mente, não as esconderei, como não esconderia meu relato se em vez de jovem e belo me representasse calvo e grisalho como o sou, em verdade. Exponho aqui meus sentimentos e opiniões, dou-os como os concebo e não como os concebem os outros; meu único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode, amanhã, ser bem diferente do de hoje, se novas experiências me mudarem. Não tenho autoridade para impor minha maneira de ver, nem o desejo, sabendo-me demasiado mal instruído para instruir os outros.

MONTAIGNE, Michel de. Da educação das crianças. In: MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. 4. ed. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1987. vol. 1, p. 76.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Virada?


Não sei porque estou escrevendo prestes a dormir. Talvez tenha medo do sono, do escurecer as vistas e não mais as levantar. Tudo parece um pouco sem sentido quando estamos prestes a dormir, vamos nos desligando do mundo até que, de repente, os olhos fecham... e sabe-se lá quando vão abrir novamente... Hão de abrir novamente, como a maioria de nós acorda horas depois...
Volto a escrever com sono este texto hoje, pouco mais de dois meses depois de ter começado, para enfim dar cabo desta ideia que se faz verbo, substantivo e tantas outras classes gramaticais, digamos, de uma forma básica de expressão linguística. Espero chegar ao final antes do dia seguinte, mas talvez não seja mais possível, pois tenho pouco mais de 15 minutos. Será?... Ouço um pouco de música enquanto tento escrever. Se a música é conhecida e boa, fujo um pouco do texto e presto atenção aos sons que me levam a  muitos anos anteriores... a dias pueris e desbravadores de espaços e pessoas... uma espécie de sono existencial, retorno aos primórdios da minha formação, de meu agir no mundo... e do mundo agindo em mim. Fim... 
Consegui?

quarta-feira, 27 de março de 2024

Citação de Tratado sobre a tolerância, de Voltaire


 

Finalmente, essa tolerância nunca provocou uma guerra civil; a intolerância cobriu a terra de carnificinas. Que se julgue agora entre essas duas rivais, entre a mãe que quer que seu filho seja degolado e a mãe que o cede, contanto que viva.

Não falo aqui senão do interesse das nações; respeitando, como devo, a teologia, só considero neste escrito o bem físico e moral da sociedade. Rogo a todo leitor imparcial para que pese essas verdades, as retifique e as difunda. Leitores atentos, que comunicam entre si suas ideias, sempre vão mais longe que o autor.

VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Tradução de Antonio Geraldo da Silva. São Paulo: Escala, [2006]. p. 37.