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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Citação de Mevitevendo, de Artur da Távola (Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros)

 

 
 
Deus é sempre um pouco mais,. Mesmo no menos. Ele é minha procura, nova, a cada encontro. É meu fluxo de vida e não a minha vida. É minha amargura tanto quanto minha alegria, porque está na dimensão do que não tenho mas sei que existe porque Dele me fala o mistério: o doce mistério, da amarga mas perfumada trajetória, átomo da eternidade, fagulha de esperança, a que chamamos vida e atribuímos tanto, quando apenas é um espasmo da carne em forma de ser e susto. E o que é isso para o Absoluto?

TÁVOLA, Artur da. Muito pessoal. In: TÁVOLA, Artur da. Mevitevendo. 7. ed. Rio de Janeiro: PGL-Comunicação, 1981. p. 23 [22-23].

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Citação de O Guarani, de José de Alencar

 

Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.

O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.

Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.

Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.

Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.

Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.

Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.

Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas.

Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.

Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.

Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado.

O índio saltou sobre o arco, e abateu-a daí a alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flecha, e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante.

Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça, e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado.

O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível.

Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá, e rogando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.

Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.

Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata.

ALENCAR, José de. O Guarani. 21. ed. São Paulo, SP: Ática, 1997. p. 30-31. (Série Bom Livro).

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Citação de Poema, de Danilo Cerqueira

Foto: Danilo Cerqueira
Foto: Danilo Cerqueira

 
 
Poema
 
Olho e saio da vida
Com o risco de esfolar o grão
Que cresce no entorno do vago
Com a órbita do homem em vão
 
Grave e leve, semente à vista, pesa e voa!
Infunde no vácuo o seixo molhado
Poço d'água ao sol entoa
Que a certeza da queda é o ocaso...
 
22/08/2013

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Citação de A palavra certa, de Herbert Vianna, George Israel, Paula Toller

 

 

A PALAVRA CERTA

Atravesso a noite com um verso
Que não se resolve
Na outra mão as flores
Como se flores bastassem
Eu espero
E espero


Não funcionam luzes, telefones
Nada se resolve
Trens parados, Carros enguiçados
Aviões no pátio esperam
E esperam


A chave que abre o céu
D´aonde caem as palavras
A palavra certa
Que faça o mundo andar

 

A PALAVRA certa. Intérprete: Herbert Vianna. Compositores: Herbert Vianna, George Israel, Paula Toller. In: SANTORINI Blues. Intérprete: Herbert Vianna. [S. l.]: EMI Music Brasil, 1997. 1 CD, faixa 7.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Citação de Memórias de um porteiro, de Denival Matias Conceição

 
Tenho saudades da vida longa, quero viver até oitocentos anos para eu poder falar de amor. Quero voltar ao jardim do Éden, ter uma mulher feita pra mim, com minhas essências, meus traços e virtudes.. Que se parecesse com Maria, que foi capaz de ser escolhida para gerar Jesus homem. 
Eu tenho falta de tudo. Os ventos estão agressivos, a natureza reclama. Tenho saudade da cidade deserta às 18 horas, da liberdade de visitar as praças. O trânsito congestionado, e eu me interrogo: para que tanta pressa?
A vida expulsou o silêncio,a calmaria se desvairou em ruídos tenebrosos, e eu me recolho, estou me implodindo aos poucos junto com a vida que se vai prematuramente.
Tenho saudade do mundo antigo, onde os idosos eram experiências acumuladas, o sol não brilhava tão forte, e as tempestades divertiam os meus olhos em meio à poeira do redemoinho, hoje destroçam cidades inteiras.
No presente, lembranças de como foi bom o passado, e o futuro será nem melhor que o presente.
Uma andorinha ferida é como me sinto, sem forças para gorjear. Minha alma nua em silêncio, as palavras mudas. Que palavras? Elas invadem minha alma. Malditas palavras. Pensamentos silenciosos, solitários. Vou tentando voar mais alto. Com minhas asas cansadas e feridas.
O vento me levará além do horizonte, já vejo daqui das nuvens o caminho. Romper a barreira do silêncio... ele me dirá: conseguiu chegar.
Ficarei morando ali até a eternidade, e em palavras doces se transformarão aquelas malditas palavras.
Bendito seja o criador desse amor bonito, o meu mundo seria vazio sem ele. Enfeitarei os livros, as imagens, os versos. Os sons das manhãs e noites silenciosas.
 
CONCEIÇÃO, Denival Matias. Memórias de um porteiro. São Paulo: Biblioteca24horas, 2011. p. 69-70.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Citação de Poesia de Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa


 

Três sonetos

I
[A Raul Campos]*
 

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante às sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

*Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913


 II

A Praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Porque o amo? Não importa nada. Adiante...

Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar p’ra elas.
Nenhuma d'elas em mim é serena...

De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros, ou as que não há.

Londres (uns cinco meses antes do Opiário) Outubro 1913


III
[A Daisy Mason]


Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos ai de Londres,
Que, embora não o sintas, tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes

(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...

(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes do Opiário, portanto) Dezembro 1913

 

CAMPOS, Álvaro de. Três sonetos. In: PESSOA, Fernando. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 37-39.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Citação de Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos


 
Apocalipse

Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.

É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!

São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas...
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,

Espião da cataclísmica surpresa,
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante!
 
 
ANJOS, Augusto dos. Apocalipse. In: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 157-158.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Mañana...

                        Para Ana, Terra...

 

Análoga e certa, à luz de girassol,

continua a grande lua a anelar

letra, arco, gérberas... e a centrar

a liberdade... Cirandam genéticas artérias...

 

Cá e lá, aos nomes e pessoas

arbitro... figuras, rostos, fatos e atos... 

e ponho a fio a tela de esperança!


Ah, é a Terra, é tudo que há nela!

Universo? Sim, único verso

a abraçar enquanto acarinha

o saber que acerta em sentir...


Há tempo? Não é preciso...

Sonhos provam desta querência

e já são neblina de manhã...

 

Se ao chão deixa água rara

umedece a alma no olhar:

concentra alegria à lágrima

e anima o riso a chorar.


 

Amo do Almo Termo, 31 de maio de 2024.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Citação de Andar a pé, de David Henry Thoreau

 


Viver muito ao ar livre, no sol e no vento, não gera, de modo algum, certa aspereza de caráter, mas sim uma cutícula mais espessa que cobre as mais belas qualidades da nossa natureza, como no rosto e nas mãos, ou como um rigoroso trabalho manual retira às mãos um pouco da delicadeza de tato. Portanto, permanecer em casa, pode, por seu turno, produzir um aveludamento e lisura, para não dizer finura da pele, acompanhado de uma sensibilidade mais apurada a certas impressões. Talvez fôssemos mais susceptíveis a algumas influências importantes para o nosso desenvolvimento intelectual e moral se o sol nos tivesse queimado menos e menos nos tivesse batido o vento. E, com efeito, é conveniente tratar adequadamente a pele grossa e a pele fina. Mas parece-me que se trata de uma crosta que se remove com a maior facilidade - que o remédio natural encontra-se na relação que existe entre a noite e o dia, o inverno e o verão, o pensamento e a experiência. Quando maior a dose de ar e de luz solar em nossos pensamentos, tanto melhor. As mãos calosas do operário mais condizem com os tecidos finos do respeito próprio e do heroísmo, cujo toque emociona o coração, do que os dedos lãnguidos da ociosidade. É pura sentimentalidade a de quem se deita de dia e se julga alvo, isento do breu e do calor da experiência.

THOREAU, Henry David. Andar a pé. Tradução de Sarmento de Beires e José Duarte. [S. l.]: eBooksBrasil.com, 2003. E-book. local. 52-56 [de 407]. Digitalização de livro em papel: THOREAU, Henry David. Andar a pé. M. Jackson Inc.: Rio de Janeiro, 1950. Ensaístas Americanos. Clássicos Jackson. v. 33.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Citação de Poesia Reunida, de Affonso Romano de Sant'Anna

 

O HOMEM E O OBJETO

1

Sou o guerreiro,

a palavra a seta,

o objeto a meta:


o guerreiro solta a seta

e no alvo se completa.


A palavra

é o corpo

onde vivo

em duplo aspecto.


A palavra

é o corpo

onde ostento

o que secreto.

 

A palavra

é o corpo

onde faço

o meu trajeto.

 

A palavra é como um mito

que se pode cultivar,

 

como a palavra também pode 

num mito nos transformar,


como o mito é uma palavra

em que se pode encalhar.


Sou o guerreiro,

a palavra a seta,

o objeto a meta:


o guerreiro solta a seta

e no alvo se completa.

 


SANT'ANNA, Affonso Romano de. A palavra e o objeto. In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. Poesia Reunida. Porto Alegre: L&PM, 2007. v. 1. p. 49.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Em menos tempo do que ontem

 

Em menos tempo do que ontem, até porque estou usando outro recurso para registrar  as palavras hoje, creio que vou escrever menos texto do que nos dois dias anteriores. Isso não deve ser problema, pois mesmo assim estou aqui, com mais vontade do que habilidade, com mais razão do que saber,  com mais de menos do que de mais... 

Deixando esses jogos de palavras de lado, prefiro comentar coisas do dia (e da tarde e da noite) para, delas, partir para questões atemporais... esperanças, esperanças... Hoje finalmente pude correr... correr... correr, fisicamente. Prazer inenarrável, ouvindo música então, melhor ainda. Não, eu não sou desses que se entrega ao corpo de forma mecânica, como máquina que funciona até a exaustão de seus componentes ou que apresenta qualquer defeito pelo uso exagerado. Procuro pensar, entre essa espécie de cansaço satisfatório, sobre coisas importantes para mim, assuntos e questões morais, éticas e sociais. Entre a observação de gestos e corpos ao longo de quase duas horas de exercício, vou meio.que me descobrindo como pessoa, cidadão, homem, ser socialmente constituído, mas que tem um contexto e ambiente condicionante (não determinante) e constante, articuladamente correlacionante, a me e a nos espreitar e tragar para seus domínios de convenções, digamos, específicas.

Esse é o destino dos resistentes: lutar a luta mais vã, como ilustra Drummond com as... Palavras!

Não lutar com as palavras talvez seja fechar os olhos ao seu sinal...

Bons momentos... e fins de tarde... e madrugadas...

 

Feira de Santana, BA, 8 de maio de 2021.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Madrugada

Tempo de minhas palavras

Onde está? Onde estão?

Vejo e sinto esforço apenas

Perto do céu e do vão...




sexta-feira, 19 de abril de 2024

Citação de Inocência, de Visconde de Taunay


 

Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe da o substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera outrora.

Esses discípulos aguçada a curiosidade com as repetidas e animadas descrições das grandes cenas da natureza, num belo dia desertam da casa paterna, espalham-se por ai além, e uns nos confins do Paraná, outros nas brenhas de São Paulo, nas planuras de Goiás ou nas bocainas de Mato Grosso, por toda a parte enfim, onde haja deserto, vão pôr em ativa prática tudo quanto souberam tão bem ouvir, relembrando as façanhas do seu respeitado progenitor e mestre.
 
TAUNAY, Alfredo d'Escragnolle Taunay, Visconde de. Inocência. São Paulo. FTD, 1992. p. 31. 

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Poemas Pueris I (anteriores a 2006 e ocasionalmente adaptados)

Fragatas veem o amanhacer
Luzes imitam a fagulha da chama
Anistiam o negro de você
O radiante olhar de quem te ama

.....................................................

Apaga-se da tela a referência
Ressurgindo abaixo do sol
Caminhando entre a circunferência
Aquece a estrela só

.....................................................

Amada amiga
Antiga, altruísta, querida
Teus gestos bem delineiam o encanto dos luares
Véu de simplicidade sobre a fronte
Acredito de talvez exista liberdade... no teu abraço
Alvo, teu jeito, 
Um gesto, um veio
A vida escorre pelo tempo
E tu escorres pelos dedos
E vens para junto de mim

.....................................................

Criança

Sorrindo, a criança vai indo
Encontrar o sol da vida que raia
Sem prever qual será o sol de amanhã,
Antes que a inocência caia e recaia
Ao longo da doce vida normal.

Uma criança apenas vive,
Apenas sabe do agora.
Apenas sente quando há hora.
Apenas sente quando chora.

.....................................................

Ser ou não ser um grão
Que um dia os outros verão
Ou mais dois olhos
Na multidão

Apenas sentindo ou
Simplesmente refletindo
Sobre minha vida
Que é uma ação
Provida de uma eterna inter-rogação?

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Virada?


Não sei porque estou escrevendo prestes a dormir. Talvez tenha medo do sono, do escurecer as vistas e não mais as levantar. Tudo parece um pouco sem sentido quando estamos prestes a dormir, vamos nos desligando do mundo até que, de repente, os olhos fecham... e sabe-se lá quando vão abrir novamente... Hão de abrir novamente, como a maioria de nós acorda horas depois...
Volto a escrever com sono este texto hoje, pouco mais de dois meses depois de ter começado, para enfim dar cabo desta ideia que se faz verbo, substantivo e tantas outras classes gramaticais, digamos, de uma forma básica de expressão linguística. Espero chegar ao final antes do dia seguinte, mas talvez não seja mais possível, pois tenho pouco mais de 15 minutos. Será?... Ouço um pouco de música enquanto tento escrever. Se a música é conhecida e boa, fujo um pouco do texto e presto atenção aos sons que me levam a  muitos anos anteriores... a dias pueris e desbravadores de espaços e pessoas... uma espécie de sono existencial, retorno aos primórdios da minha formação, de meu agir no mundo... e do mundo agindo em mim. Fim... 
Consegui?

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Citação de O coração amarelo, de Pablo Neruda

FILOSOFIA
 
Fica provada a certeza
da árvore verde na primavera
e do córtex terrestre
- alimentam-nos os planetas
apesar das erupções 
e o mar nos oferece peixes
apesar de seus maremotos -
somos escravos da terra
que também é dona do ar.
 
Passeando por uma laranja
eu passei mais de uma vida
repetindo o globo terrestre
- a geografia e a ambrosia -
os jogos de cor de jacinto
e um cheiro branco de mulher
como as flores de farinha.
 
Nada se consegue voando
para se escapar deste globo
que te aprisionou ao nascer.
E há que confessar esperando
que o amor e o entendimento
vêm de baixo, se levantam
e crescem dentro de nós 
como cebolas, azinheiras,
como tartarugas ou flores,
como países, como raças,
como caminhos e destinos.

 
NERUDA, Pablo. Filosofia. In: NERUDA, Pablo. O coração amarelo. Tradução de Olga Savary. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 27-28.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Citação de Pequenos contos para começar o dia, de Leonardo Sakamoto

 

Os professores de matemática dizem que a menor distância entre dois pontos é uma reta. Menos pro meu avô. "Besteira! A menor distância é aquela em que a gente se diverte mais." Apesar de ser homem direito, nunca andou em linha. Já viúvo, levou mais de mês para chegar a Belém, pois serpenteou meio Brasil - deixando amigos, amores e saudades por onde passou. Cresci e, encantado pela solidão do imediato, achei isso uma total perda de tempo. Coisa de velho, sabe? Até que ele morreu. E vi que o velho era eu, pois um mundo de gente, sorrindo de dor, foi ao seu enterro. Desde então, em sua memória, respeito o humor do vento antes de começar uma caminhada.

SAKAMOTO, Leonardo. Pequenos contos para começar o dia. São Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 11.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Citação de Abismo intacto, de Yttérbio Homem de Siqueira

 

 
SALMO DO INSTANTE - I
A Juvenal Félix da Silva

Este momento
é uma centelha
que se desprendeu
do negro bojo
da eternidade.
Como me dói,
é um instante
de céu a céu.

Quantos milagres
eu não teria
se possuísse
completamente
este momento
que transbordou
das mãos de Deus.

Que estrela, mundo ignoto,
está além do poder
deste momento de minha vida?
Grave magia do mundo
jaz mansamente em minhas mãos.
 
Como sou grande, como sou tênue,
levo um instante no coração:
é uma óstia arrancada
do hirsuto corpo de Deus.
É um instante em minha vida.

SIQUEIRA, Yttérbio Homem de. Salmo do Instante - I. In: SIQUEIRA,ira. Yttérbio Homem de. Abismo intacto. Rio de Janeiro: José Olympio; Recife: Fundarte, 1983. p. 38.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Citação de Operário em construção, de Vinicius de Moraes




O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Rio de Janeiro , 1959

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.


MORAES, Vinicius de. O operário em construção. VM Cultural, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-operario-em-construcao. Acesso em: 9 mar. 2024.

segunda-feira, 11 de março de 2024

A chegada de Lampião no céu, Guaipuan Vieira

 
Ilustração do cordel (Amazon)

A chegada de Lampião no Céu

Foi numa Semana Santa
Tava o céu em oração
São Pedro estava na porta
Refazendo anotação
Daqueles santos faltosos
Quando chegou Lampião.

Pedro pulou da cadeira
Do susto que recebeu
Puxou as cordas do sino
Bem forte nele bateu
Uma legião de santos
Ao seu lado apareceu.

São Jorge chegou na frente
Com sua lança afiada
Lampião baixou os óculos
Vendo aquilo deu risada
Pedro disse: Jorge expulse
Ele da santa morada.

E tocou Jorge a corneta
Chamando sua guarnição
Numa corrente de força
Cada santo em oração
Pra que o santo Pai Celeste
Não ouvisse a confusão.

O pilotão apressado
Ligeiro marcou presença
Pedro disse a Lampião:
Eu lhe peço com licença
Saia já da porta santa
Ou haverá desavença.

Lampião lhe respondeu:
Mas que santo é o senhor?
Não aprendeu com Jesus
Excluir ódio e rancor?...
Trago paz nesta missão
Não precisa ter temor.

Disse Pedro isso é blasfêmia
É bastante astucioso
Pistoleiro e cangaceiro
Esse povo é impiedoso
Não ganharão o perdão
Do santo Pai Poderoso

Inda mais tem sua má fama
Vez por outra comentada
Quando há um julgamento
Duma alma tão penada
Porque fora violenta
Em sua vida é baseada.

- Sei que sou um pecador
O meu erro reconheço
Mas eu vivo injustiçado
Um julgamento eu mereço
Pra sanar as injustiças
Que só me causam tropeço.

Mas isso não faz sentido
Falou São Pedro irritado
Por uma tribuna livre
Você aqui foi julgado
E o nosso Onipotente
Deu seu caso encerrado

- Como fazem julgamento
Sem o réu estar presente?
Sem ouvir sua defesa?
Isso é muito deprimente
Você Pedro está mentindo
Disso nunca esteve ausente.

Sobre o batente da porta
Pedro bateu seu cajado
De raiva deu um suspiro
E falou muito exaltado:
Te excomungo Virgulino
Cangaceiro endiabrado.

Houve um grande rebuliço
Naquele exato momento
São Jorge e seus guerreiros
Cada qual mais violento
Gritaram pega o jagunço
Ele aqui não tem talento.

Lampião vendo o afronto
Naquela santa morada
Disse: Deus não está sabendo
Do que há na santarada
Bateu mão no velho rifle
Deu pra cima uma rajada.

O pipocado de bala
Vomitado pelo cano
Clareou toda a fachada
Do reino do Soberano
A guarnição assombrada
Fez Pedro mudar de plano.

Em um quarto bem acústico
Nosso Senhor repousava
O silêncio era profundo
Que nada estranho notava
Sem dúvida o Pai Celeste
Um cansaço demonstrava.

Pedro já desesperado
Ligeiro chamou São João
Lhe disse sobressaltado:
Vá chamar Cícero Romão
Pra acalmar seu afilhado
Que só causa confusão.

Resmungando bem baixinho
Pra raiva poder conter
Falou para Santo Antônio:
Não posso compreender
Este padre não é santo
O que aqui veio fazer?!

Disse Antônio: fale baixo
De José é convidado
Ele aqui ganhou adeptos
Por ser um padre adorado
No Nordeste brasileiro
Onde é “santificado”.

Padre Cícero experiente
Recolheu-se ao aposento
Fingindo não saber nada
Um plano traçava atento
Pra salvar seu afilhado
Daquele acontecimento.

- Logo João bateu na porta
Lhe transmitindo o recado
Cícero disse: vá na frente
Fique despreocupado
Diga a Pedro que se acalme
Isso já será sanado.

Alguns minutos o padre
Com uma Bíblia na mão
Ao ver Pedro lhe indagou:
O que há para aflição?
Quem lá fora tenta entrar
E também um ser cristão,

São Pedro disse: absurdo
Que terminou de falar
Mas Cícero foi taxativo:
Vim a confusão sanar
Só escute o réu primeiro
Antes de você julgar.

Não precisa ele entrar
Nesta sagrada mansão
O receba na guarita
Onde fica a guarnição
Com certeza há muitos anos
Nos busca aproximação.
 

Vou abrir esta exceção
Falou Pedro insatisfeito
O nosso reino sagrado
Merece muito respeito
Virou-se para São Paulo:
Vá buscar este sujeito.

Lampião tirou o chapéu
Descalço também ficou
Avistando o seu padrinho
Aos seus pés se ajoelhou
O encontro foi marcante
De emoção Pedro chorou

Ao ver Pedro transformado
Levantou-se e foi dizendo:
Sou um homem injustiçado
E por isso estou sofrendo
Circula em torno de mim
Só mesmo o lado ruim
Como herói não estão me vendo.

Sou o Capitão Virgulino
Guerrilheiro do sertão
Defendi o nordestino
Da mais terrível aflição
Por culpa duma polícia
Que promovia malícia
Extorquindo o cidadão.

Por um cruel fazendeiro
Foi meu pai assassinado
Tomaram dele o dinheiro
De duro serviço honrado
Ao vingar a sua morte
O destino em má sorte
Da “lei” me fez um soldado.

Mas o que devo a visita.
Pedro fez indagação
Lampião sem bater vista:
Vê padim Ciço Romão
Pra antes do ano novo
Mandar chuva pro meu povo
Você só manda trovão

Pedro disse: é malcriado
Nem o diabo lhe aceitou
Saia já seu excomungado
Sua hora já esgotou
Volte lá pro seu Nordeste
Que só o cabra da peste
Com você se acostumou.

FIM

 

VIEIRA, Guaipuan, A chegada de Lampião no Céu. [S. l.]: Centro Cultural Digital, 1997. Disponível em https://centrocultural.com.br/items/show/13. Acesso em: 27 fev. 2024.