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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Citação de Juca Mulato, de Menotti Del Picchia

 

 
2
"Também como esse bosque eu tive outrora
na alma um bosque cerrado de emoções.
As palmeiras das minhas ilusões
iam levando o fuste espaço afora.
 
Floriam sonhos; era uma pletora
de crenças, de desejos, de ambições...
Não havia por todos os sertões
mais luxuriante e mais violenta flora.
 
Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...
É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe
em turbilhões sinistros e medonhos.
 
Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,
pois na luz de um olhar lânguido e triste
também ardeu o bosque dos meus sonhos..."
 
3
"Água cantante, soluçante, esse gemente
marulho triste, quantas tristes cismas trás...
E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,
se vais cantando por ansiar o que há na frente
ou soluçando pelo que deixaste atrás...
 
Água cantante, água estuante, é singular
a semelhança em que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e nunca mais hás de voltar,
vens da montanha e vais correndo para o mar,
venho da vida e vou correndo para a morte.
 
Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho
nas incertezas de caminhos que não sei...
E, na inconstância em que me agito, só obtenho
essa ânsia imensa de deixar o que já tenho,
depois a dor de não ter mais o que deixei!"
 

PICCHIA, Paulo Menotti del. Juca Mulato. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p. 52-54.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Citação de A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo

 


Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome.
Nasci sob a influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio.
Sou míope; pior do que isso, duplamente míope, míope física e moralmente.
Miopia física: — a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta.
E por isso ando na cidade e não vejo as casas.
Miopia moral: — sou sempre escravo das ideias dos outros; por que nunca pude ajustar duas ideias minhas.
E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.
Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!...
mas a convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito.
Disse-me um negociante meu amigo que por essa luz da consciência represento eu a antítese de não poucos varões assinalados que não têm dez por cento de capital da inteligência que ostentam, e com que negociam na praça das coisas públicas.
— Mas esses varões não quebram, negociando assim?... perguntei-lhe.
— Qual! são as coisas públicas que andam ou se mostram quebradas.
— E eles?...
— Continuam sempre a negociar com o crédito dos tolos, e sempre se apresentam como boas firmas.
Na cândida inocência da minha miopia moral não pude entender se havia simplicidade ou malícia nas palavras do meu amigo.

MACEDO, Joaquim Manuel de. A luneta mágica. 10 ed. 13. impres. São Paulo: Ática, 1999. (Série Bom Livro). p. 11.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Citação de O Guarani, de José de Alencar

 

Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.

O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.

Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.

Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.

Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.

Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.

Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.

Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas.

Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.

Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.

Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata, e adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado.

O índio saltou sobre o arco, e abateu-a daí a alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flecha, e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante.

Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça, e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado.

O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível.

Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá, e rogando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.

Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.

Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata.

ALENCAR, José de. O Guarani. 21. ed. São Paulo, SP: Ática, 1997. p. 30-31. (Série Bom Livro).

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Citação de Memórias de um porteiro, de Denival Matias Conceição

 
Tenho saudades da vida longa, quero viver até oitocentos anos para eu poder falar de amor. Quero voltar ao jardim do Éden, ter uma mulher feita pra mim, com minhas essências, meus traços e virtudes.. Que se parecesse com Maria, que foi capaz de ser escolhida para gerar Jesus homem. 
Eu tenho falta de tudo. Os ventos estão agressivos, a natureza reclama. Tenho saudade da cidade deserta às 18 horas, da liberdade de visitar as praças. O trânsito congestionado, e eu me interrogo: para que tanta pressa?
A vida expulsou o silêncio,a calmaria se desvairou em ruídos tenebrosos, e eu me recolho, estou me implodindo aos poucos junto com a vida que se vai prematuramente.
Tenho saudade do mundo antigo, onde os idosos eram experiências acumuladas, o sol não brilhava tão forte, e as tempestades divertiam os meus olhos em meio à poeira do redemoinho, hoje destroçam cidades inteiras.
No presente, lembranças de como foi bom o passado, e o futuro será nem melhor que o presente.
Uma andorinha ferida é como me sinto, sem forças para gorjear. Minha alma nua em silêncio, as palavras mudas. Que palavras? Elas invadem minha alma. Malditas palavras. Pensamentos silenciosos, solitários. Vou tentando voar mais alto. Com minhas asas cansadas e feridas.
O vento me levará além do horizonte, já vejo daqui das nuvens o caminho. Romper a barreira do silêncio... ele me dirá: conseguiu chegar.
Ficarei morando ali até a eternidade, e em palavras doces se transformarão aquelas malditas palavras.
Bendito seja o criador desse amor bonito, o meu mundo seria vazio sem ele. Enfeitarei os livros, as imagens, os versos. Os sons das manhãs e noites silenciosas.
 
CONCEIÇÃO, Denival Matias. Memórias de um porteiro. São Paulo: Biblioteca24horas, 2011. p. 69-70.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Citação de Como e porque sou romancista, de José de Alencar


 

Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de honra.

Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo e bem pesado.

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual se desfazia em recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido.

Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes [sic] o seio.

Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas.

Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o Revdº. Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao entrar – [sic]Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda mais perturbou-se:

– Que aconteceu? Alguma desgraça? – perguntou arrebatadamente. 

As senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos o pranto e evitar seus remoques, não proferiram palavra. Tomei eu a mim responder:

– Foi o pai de Amanda que morreu! – disse, mostrando-lhe o livro aberto.

Compreendeu o Padre Carlos e soltou uma gargalhada, como ele as sabia dar, verdadeira gargalhada homérica, que mais parecia uma salva de sinos a repicarem do que riso humano. E após esta, outra e outra, que era ele inesgotável quando ria de abundância de coração, com o gênio prazenteiro de que a natureza o dotara.

Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária, que é entre todas a de minha predileção?

Não me animo a resolver essa questão psicológica, mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões. 


ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas, SP: Pontes, 1990. p. 27-29.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Citação de Andar a pé, de David Henry Thoreau

 


Viver muito ao ar livre, no sol e no vento, não gera, de modo algum, certa aspereza de caráter, mas sim uma cutícula mais espessa que cobre as mais belas qualidades da nossa natureza, como no rosto e nas mãos, ou como um rigoroso trabalho manual retira às mãos um pouco da delicadeza de tato. Portanto, permanecer em casa, pode, por seu turno, produzir um aveludamento e lisura, para não dizer finura da pele, acompanhado de uma sensibilidade mais apurada a certas impressões. Talvez fôssemos mais susceptíveis a algumas influências importantes para o nosso desenvolvimento intelectual e moral se o sol nos tivesse queimado menos e menos nos tivesse batido o vento. E, com efeito, é conveniente tratar adequadamente a pele grossa e a pele fina. Mas parece-me que se trata de uma crosta que se remove com a maior facilidade - que o remédio natural encontra-se na relação que existe entre a noite e o dia, o inverno e o verão, o pensamento e a experiência. Quando maior a dose de ar e de luz solar em nossos pensamentos, tanto melhor. As mãos calosas do operário mais condizem com os tecidos finos do respeito próprio e do heroísmo, cujo toque emociona o coração, do que os dedos lãnguidos da ociosidade. É pura sentimentalidade a de quem se deita de dia e se julga alvo, isento do breu e do calor da experiência.

THOREAU, Henry David. Andar a pé. Tradução de Sarmento de Beires e José Duarte. [S. l.]: eBooksBrasil.com, 2003. E-book. local. 52-56 [de 407]. Digitalização de livro em papel: THOREAU, Henry David. Andar a pé. M. Jackson Inc.: Rio de Janeiro, 1950. Ensaístas Americanos. Clássicos Jackson. v. 33.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Citação de Inocência, de Visconde de Taunay


 

Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe da o substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera outrora.

Esses discípulos aguçada a curiosidade com as repetidas e animadas descrições das grandes cenas da natureza, num belo dia desertam da casa paterna, espalham-se por ai além, e uns nos confins do Paraná, outros nas brenhas de São Paulo, nas planuras de Goiás ou nas bocainas de Mato Grosso, por toda a parte enfim, onde haja deserto, vão pôr em ativa prática tudo quanto souberam tão bem ouvir, relembrando as façanhas do seu respeitado progenitor e mestre.
 
TAUNAY, Alfredo d'Escragnolle Taunay, Visconde de. Inocência. São Paulo. FTD, 1992. p. 31. 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Citação de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde

 

 

- Eu agora nunca aprovo nem reprovo nada. Aprovar e reprovar são atitudes absurdas para com a vida. Não viemos ao mundo dar larga aos nossos preconceitos morais. Jamais presto atenção ao que diz o vulgo, nunca interfiro no que fazem as pessoas simpáticas. Quando uma personalidade me fascina, seja qual for o modo de expressão escolhido por essa personagem, considero-o absolutamente satisfatório. Dorian Gray apaixonou-se por uma linda pequena, que personifica Julieta, e pretende casar com ela. Por que não? Se casasse com Messalina, nem por isso seria menos interessante. Você sabe que não sou um paladino do casamento. O verdadeiro inconveniente do casamento é extingue em nós o egoísmo. E os seres sem egoísmo são incolores. Carecem de personalidade. Ainda assim, há temperamentos que o estado conjugal torna mais complexos. Esses conservam o seu egoísmo e acrescentam-lhe muitos outros "egos". Obrigados por isso a viver uma vida múltipla, tornam-se superiormente organizados. E ser seriormente organizado é, a meu ver, a finalidade da existência do homem. Ademais, toda experiência tem valor, e, diga-se o que o que se disser, o casamento é sem dúvida uma experiência. Espero que Dorian Gray case com essa menina, que a adore apaixonadamente seis meses e depois, da noite para o dia, apaixone-se por outra. Ele seria um objeto de estudo maravilhoso.


WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Marina Gaspari. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. p. 80-81.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Citação de Abismo, de Carlos Ribeiro

 

As pessoas com ideias fixas tendem geralmente para um dogmatismo mais ou menos velado, e isso costuma ser um obstáculo intransponível para o acesso a novas realidades. Ou, nas suas próprias palavras, a uma percepção não convencional da realidade. É preciso ter disponibilidade de espírito e coragem de olhar o mundo por ângulos insólitos, novos e surpreendentes. Realçar detalhes que até então foram desprezados. 

RIBEIRO, Carlos. Abismo. São Paulo: Geração Editorial, 2004. p. 42.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Citação 4 de Juca Mulato, de Menotti del Picchia

 

 

Ressurreição

1

Coqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível:
queres subir ao céu, mas prende-te a raiz...
O destino que tens de querer o impossível
é igual a este meu de querer ser feliz.

Por mais que bebas a seiva e que as forças recolhas,
que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos,
no último esforço vão, caem-te murchas as folhas
e a mim, murchos, os sonhos!

Ai! coqueiro do mato! Ai! coqueiro do mato!
Em vão tentas os céus escalar na investida.
Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato.
Ai! tu sempre serás um coqueiro do mato...
Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!"

"Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...
este sonho que ergui, o poderia por
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará...

E quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
escondeu-a tão bem que nem sabe onde está!"

E Mulato parou.
Do alto daquela serra,
cismando, o seu olhar era vago e tristonho:
"Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
o meu braço nasceu para a faina da terra."

Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heróico labor que se agita na empreita,
palpitou na esperança imensa das floradas,
pressentiu a fartura enorme da colheita...

Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...
Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
Juca Mulato volta outra vez para a terra,
procura o teu amor numa alma irmã da tua.

Esquece calmo e forte. O destino que impera
um recíproco amor às almas todas deu.
Em vez de desejar o olhar que te exaspera,
procura esse outro olhar que te espreita e te espera,
que há, por certo, um olhar que espera pelo teu..."

PICCHIA, Paulo Menotti del. Juca Mulato. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p. 51-54.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Citação 3 de Juca Mulato, de Menotti del Picchia

 

 


A Voz das Coisas

E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"

E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?"

E a torrente que ia rolar no abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo".

Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
- Será doutor! - a mãe disse, e teu pai, sensato:
- Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! -
Desde então foste nosso e, desde esse momento,
nós te amamos seguindo o teu incerto trilho
com carinhos de mãe que defende seu filho!"

Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços!
"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?

Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"

"Não vás" - lhe disse o azul - "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas..."

Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:
"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo.
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera.
Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo ?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento.
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"

PICCHIA, Paulo Menotti del. Juca Mulato. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p. 47-49.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Citação 2 de Juca Mulato, de Menotti del Picchia

 

 
2
"Também como esse bosque eu tive outrora
na alma um bosque cerrado de emoções.
As palmeiras das minhas ilusões
iam levando o fuste espaço afora.
 
Floriam sonhos; era uma pletora
de crenças, de desejos, de ambições...
Não havia por todos os sertões
mais luxuriante e mais violenta flora.
 
Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...
É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe
em turbilhões sinistros e medonhos.
 
Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,
pois na luz de um olhar lânguido e triste
também ardeu o bosque dos meus sonhos..."
 
3
"Água cantante, soluçante, esse gemente
marulho triste, quantas tristes cismas trás...
E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,
se vais cantando por ansiar o que há na frente
ou soluçando pelo que deixaste atrás...
 
Água cantante, água estuante, é singular
a semelhança em que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e nunca mais hás de voltar,
vens da montanha e vais correndo para o mar,
venho da vida e vou correndo para a morte.
 
Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho
nas incertezas de caminhos que não sei...
E, na inconstância em que me agito, só obtenho
essa ânsia imensa de deixar o que já tenho,
depois a dor de não ter mais o que deixei!"
 
PICCHIA, Paulo Menotti del. Juca Mulato. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p. 32-33.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Citação de A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães


 

Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro por seu par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanha. Esta saleta comunica imediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta. Acham-se ai uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do cepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e frivolidades da vida.
Entre eles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos acontecimentos desta história. Este nada tem de esplenético nem de byroniano; pelo contrário o seu todo respira o mais chato e ignóbil prosaísmo. Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão. Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo-se do rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama-se Martinho.

GUIMARÃES, Barnardo. A escrava Isaura. São Paulo: Ciranda Cultural, 2006. p. 83-84.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Citação 1 de Juca Mulato, de Menotti del Picchia

 
Fascinação

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! tudo ama!
 
Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal, humano e forte,
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.
 
Por isso, quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço
atenazando-o para estrangulá-lo!
 
É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos... 

Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!
 
É por isso que vês, por tudo
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota,
no torturante amor do mais puro e mais alto! 
 
PICCHIA, Paulo Menotti del. Juca Mulato. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. p. 25-26.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Manhã

Bom dia! Que seus olhos,

Mares da terra, abertos pro céu,

Inundem a vida de libelos* novos,

Análogos... amigos... anel...


Danilo Cerqueira


*Libelo: Libelo (Roma Antiga) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

sábado, 15 de dezembro de 2018

TUDO

Fotografia: Danilo Cerqueira


Que palavra dita! Que olhar encontrado...
Audições... passos descalçados...
Brilho nos olhos, estrelas da noite.
Lua de amarelo dourado...
Tanta coisa perdida em terraço...
Pena e bruma, sombra e duna... enfeites.

Vejo e voo, sem foco, sem olhos, sem faro...
Auspício sem corpo isolado...
Ter pelas contas os sorrisos da vida.
Reler nos degraus de algo que supero
O brinquedo do tempo encontrado
Sob a luz de uma fissura querida...


Danilo Cerqueira Almeida
15 dez. 2018, 18h17.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

,oXo,

Depois de escrito meu poema, amiga, ele é teu
não só letras conjuntas, pausas e entonações
leituras únicas, lábios e olhares em
momentos teus, do que sentires e a quem mostrares

São apalavrados que assentam no tempo
lauda e pauta para sempre
sobre o adeus que nunca se dirá
da boa chegada sem espera
do encontro não marcado
na vitória do título mais amado
dos mais amáveis
dos mais amadores...

Feliz, a lembrança entusiasma
a escrita conforta e a leitura aproxima
ao pé da serra, destino e horizonte desalinham
no que se pensa destas letras, antes e depois
da primeira vista, do primeiro poema

Danilo Cerqueira

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Ires, Tejo!

Como podes ser o rio nunca visto
A correr pelos sertões do coração?
Irás ao vento, linda imagem.
Vela às palmas, em chamas e às águas...
És a dança nas paragens da canção!

Lenço de memória e alento,
O dia a dia se completa
Nas linhas que unem, às bordas do pranto,
Encontros e despedidas.
Jamais esquecimentos... e amores.

Fique, instante! Postergue-se, momento!
Ele não se perde, ele não se desprende
Da cúpula da imaginação, dos mares e dos rios
Do ser e da amiga, da vista e do riso
Da voz e da oração.

Danilo Cerqueira
01/07/2014

sábado, 19 de setembro de 2009

A Cria-Dante

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Te deixo catedrais
A badalarem verdades orquestradas
Violinos violeiros lindos
A canção que alça e repõe o firmamento
Quando arroubo de garça!


Se casto... Palavras tuas... Luas gravitam em duas!
És fera a tontear-me de esguelha!
Sempre artífice ante arqui-deusa
Cujos lábios são sombras - Sê-las!
Cujas curvas são ondas - Vê-las!
Cuja coma é negra... A untar
Lírica a labuta precípua
Do arqueiro-inscultor.
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