sexta-feira, 26 de julho de 2024

Citação de Como e porque sou romancista, de José de Alencar


 

Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de honra.

Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo e bem pesado.

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual se desfazia em recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido.

Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes [sic] o seio.

Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas.

Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o Revdº. Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao entrar – [sic]Vendo-nos a todos naquele estado de aflição, ainda mais perturbou-se:

– Que aconteceu? Alguma desgraça? – perguntou arrebatadamente. 

As senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos o pranto e evitar seus remoques, não proferiram palavra. Tomei eu a mim responder:

– Foi o pai de Amanda que morreu! – disse, mostrando-lhe o livro aberto.

Compreendeu o Padre Carlos e soltou uma gargalhada, como ele as sabia dar, verdadeira gargalhada homérica, que mais parecia uma salva de sinos a repicarem do que riso humano. E após esta, outra e outra, que era ele inesgotável quando ria de abundância de coração, com o gênio prazenteiro de que a natureza o dotara.

Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária, que é entre todas a de minha predileção?

Não me animo a resolver essa questão psicológica, mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões. 


ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas, SP: Pontes, 1990. p. 27-29.

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