sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Citação de A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães


 

Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro por seu par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanha. Esta saleta comunica imediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta. Acham-se ai uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do cepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e frivolidades da vida.
Entre eles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos acontecimentos desta história. Este nada tem de esplenético nem de byroniano; pelo contrário o seu todo respira o mais chato e ignóbil prosaísmo. Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão. Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo-se do rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama-se Martinho.

GUIMARÃES, Barnardo. A escrava Isaura. São Paulo: Ciranda Cultural, 2006. p. 83-84.

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