quarta-feira, 22 de maio de 2024

Citação de Eu, um outro, de Imre Kertész

 Uiva o vento úmido, angustiante das tragédias. Abre-se a terra, vem abaixo o céu. As pessoas de repente mudam, desmoronam, envelhecem. O sopro do inferno lhes tira a cor do rosto. Os transeuntes que se vêem [sic] nas ruas são vultos brancos e cinza, cadáveres. As metamorfoses do apocalipse. Na Vérmezõ, ao passar pela estátua de Béla Kun, coberta de estrelas-de-david rabiscadas, de repente entendi que aquilo que na juventude julgava covardia, estupidez, cegueira e - no fundo - a forma quase inconcebivelmente tragicômica do suicídio, na realidade, era o tipo de impotência que se transforma em dignidade. Pois existe algo de digno em finalmente cumprir a ordem brutal do assassino e aceitar friamente ser marcado e massacrado. Existe algo de generoso na comodidade da vítima. Quanto a mim, hoje já desconfio que vou permanecer no meu lugar, quando muito, vou sentir mais nojo. Uma vida longa nos reserva cada vez mais surpresas, surpresas que preparamos para nós mesmos.

 

KERTÉSZ, Imre. Eu, um outro. Tradução de Sandra Nagy. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. p. 12-13.

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