quarta-feira, 15 de maio de 2024

Citação de O Cortiço, de Aluísio Azevedo

 


Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma ausência de meses, durante a qual só dera noticias suas nas ocasiões de pagar o aluguel do cômodo.

Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas cores dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abóbora vermelha.

- Põe isso tudo ai nessa porta. Aí no número 9, pequeno! gritou ela ao moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto. - Podes ir embora, carapeta!

Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de saudações.

- Olha! quem aí vem!

- Olé! Bravo! É a Rita Baiana!

- Já te fazíamos morta e enterrada!

- E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?...

- Então, coisa-ruim! por onde andaste atirando esses quartos?

- Desta vez a coisa foi de esticar, hein?!

Rita havia parado em meio do pátio.

Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novidades dela. Não vinha em trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.

Acudiu quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as chufas do bom acolhimento.

Por onde andara aquele diabo, que não aparecia para mais de três meses?

- Ora, nem me fales, coração! Sabe? pagode de roça! Que hei de fazer? é a minha cachaça velha!...

- Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura?

- Em Jacarepaguá.

- Com quem?

- Com o Firmo...

- Oh! Ainda dura isso?

- Cala a boca! A coisa agora é séria!

- Qual! Quem mesmo? tu? Passa fora!

- Paixões da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por ano! Não contando as miúdas!

- Não! isso é que não! Quando estou com um homem não olho para outro! Leocádia, que era perdida pela mulata, saltara-lhe ao pescoço ao primeiro encontro, e agora, defronte dela, com as mãos nas cadeiras, os olhos úmidos de comoção, rindo, sem se fartar de vê-la, fazia-lhe perguntas sobre perguntas:

- Mas por que não te metes tu logo por uma vez com o Firmo? por que não te casas com ele?

- Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê? para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu!

E sacudiu todo o corpo num movimento de desdém que lhe era peculiar.

- Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito mole, na sua honestidade preguiçosa.

Esta também achava infinita graça na Rita Baiana e seria capaz de levar um dia inteiro a vê-la dançar o chorado.

Florinda ajudava a mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cair-lhe nos braços. A própria Marciana, de seu natural sempre triste e metida consigo, apareceu à janela, para saudá-la. A das Dores, com as saias arrepanhadas no quadril e uma toalha por cima amarrada pela parte de trás e servindo de avental, o cabelo ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça, abandonou a limpeza que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe no nariz:

- Desta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?...

E, ambas a caírem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que não têm segredos de amor uma para a outra.

A Bruxa veio em silêncio apertar a mão de Rita e retirou-se logo.

- Olha a feiticeira! bradou esta última, batendo no ombro da idiota. Que diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um feitiço para prender meu homem!

E tinha uma frase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel, que apareceu toda cerimoniosa na sua sala da missa e com o seu velho xale de Macau, abraçou-a e pediu-lhe uma pitada, que a senhora recusou, resmungando:

- Sai daí diabo!

- Cadê Pombinha? perguntou a mulata.

Mas, nem [sic] ocasião, Pombinha acabava justamente de sair de casa, muito bonita e asseada com um vestido novo de cetim. As mãos ocupadas com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha.

- Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando a cabeça. É mesmo uma flor! - E logo que Pombinha se pôs ao seu alcance, abraçou-lhe a cintura e deu-lhe um beijo. - O João Costa se não te fizer feliz como os anjos sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinelo! Juro pelos cabelos do meu homem! - E depois, tornando-se séria, perguntou muito em voz baixa a Dona Isabel: - Já veio?... - ao que a velha respondeu negativamente com um desconsolado e mudo abanar de orelhas.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 61-63.

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