segunda-feira, 22 de abril de 2024

Citação de A metamorfose, de Franz Kafka

 

Esse modo de abrir a porta impediu que ele fosse visto, embora a porta já estivesse aberta. Teve primeiro de girar lentamente contra uma das folhas da porta, com grande cuidado para não cair bruscamente de costas no umbral. E ainda estava ocupado em realizar tão difícil movimento, sem tempo para pensar em outra coisa, quando ouviu um “oh!” do gerente, que soou como soa o sopro do vento, e viu esse senhor, o mais próximo da porta, tapar a boca com a mão e retroceder lentamente, como impelido por uma força invisível.

A mãe — que, apesar da presença do gerente estava ali despenteada, com o cabelo enredado no alto da cabeça — olhou primeiro para Gregor, juntando as mãos, avançou depois dois passos para ele e desmaiou por fim, em meio às saias espalhadas ao seu redor, com o rosto escondido nas profundezas do peito. O pai ameaçou com o punho, com expressão hostil, como se quisesse empurrar Gregor para o interior do quarto; voltou-se depois, saindo com passo incerto para a ante-sala, e, cobrindo os olhos com as mãos, pôs-se a chorar de tal modo que o pranto lhe sacudia o robusto peito.

Gregor, assim, não chegou a penetrar na sala; do interior de seu quarto, permaneceu apoiado na folha fechada da porta, de modo que apenas se via a metade superior do corpo, com a cabeça inclinada meio de lado, espiando para fora. Enquanto isso, o dia ia clareando e na calçada oposta recortava-se nítido um pedaço do edifício enegrecido fronteiriço. Era um hospital, cuja monótona fachada era rompida por simétricas janelas. A chuva não tinha cessado, mas caía já em grandes gotas isoladas que se viam chegar distintamente ao solo. Sobre a mesa estavam os utensílios do café, pois para o pai o desjejum era a refeição principal do dia, que ele gostava de prolongar com a leitura de vários jornais. Na parede em frente de Gregor pendia um retrato dele, feito durante seu serviço militar, e que o representava com uniforme de tenente, a mão na espada, sorrindo despreocupadamente, com um ar que parecia exigir respeito para sua indumentária e sua atitude. Essa sala dava para o vestíbulo; pela porta aberta via-se a do apartamento, aberta também, o patamar da escadaria e a parte desta que conduzia aos andares inferiores.

— Bem — disse Gregor muito convicto de ser o único que conservara sua serenidade. — Bem, visto-me num instante, recolho o mostruário e saio de viagem. Permitir-me-eis que saia de viagem, não é? Eia, senhor gerente, já vê que não sou teimoso e que trabalho com gosto. Viajar é cansativo; mas eu não saberia viver sem viajar. Aonde vai, senhor gerente? À firma? Sim? Contará tudo como aconteceu? Pode alguém ter um instante de incapacidade para o trabalho; mas então é precisamente quando os chefes devem lembrar-se de quão útil ele tem sido, e pensar que, passado o impedimento, voltará a ser tanto mais ativo e trabalhará com maior zelo. Eu, como o senhor sabe muito bem, estou muito agradecido ao chefe. Tenho de cuidar de meus pais e minha irmã. É verdade que hoje me encontro num grave aperto. Mas trabalhando sairei dele. Não torne as coisas mais difíceis para mim do que elas já são. Ponha-se de meu lado. Já sei que na firma ninguém quer bem ao viajante. Todos acreditam que ganha dinheiro com espertezas, e leva uma vida de luxo. É certo que não há nenhuma razão especial para que esse preconceito desapareça. Mas o senhor, senhor gerente, está mais ao corrente do que são as coisas do que o restante do pessoal, e até (e diga-se isso em confiança) do que o próprio chefe, que em sua qualidade de patrão engana-se freqüentemente a respeito de um empregado. O senhor sabe muito bem que o viajante, como está fora da firma a maior parte do ano, é alvo fácil de falatórios e vítima de coincidências e queixas infundadas contra as quais não lhe é possível defender-se, já que a maioria das vezes não chegam ao seu conhecimento; apenas ao regressar arrebentado de uma viagem começa a notar diretamente as funestas conseqüências de uma causa invisível. Senhor gerente, não se vá sem dizer-me algo que me prove que me dá razão, pelo menos em parte.

Mas, desde as primeiras palavras de Gregor o gerente dera meia-volta e observava-o por cima do ombro, convulsivamente agitado com um esgar de asco nos lábios. Enquanto Gregor falava, não permaneceu um momento tranqüilo. Retirou-se para a porta sem tirar os olhos de cima dele, mas muito lentamente, como se uma força misteriosa o impedisse de abandonar aquela sala. Chegou por fim ao vestíbulo, e ante a presteza com que ergueu pela última vez o pé do chão, dir-se-ia que pisara em fogo. Alongou o braço direito em direção à escada, como se esperasse encontrar ali milagrosamente a liberdade.

 

KAFKA,  Franz. A metamorfose. In: KAFKA,  Franz. A metamorfose e Um artista da fome. Tradução de Torrieri Guimarães. Texto sobre autor e obra de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. p. 5-74. p. 21-23.

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