quarta-feira, 30 de julho de 2025

Citações de Olhos d'água, de Conceição Evaristo


Lumbiá tinha ainda outros truques. Sabia chorar, quando queria. Escolhia uma mesa qualquer, sentava, abaixava a cabeça e se banhava em lágrimas. Sempre começava chorando por safadeza, mas em meio às lágrimas ensaiadas, o choro real, profundo, magoado se confundia. Nas histórias, que inventava nos momentos de choro para comover as pessoas, tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado real da vida dele ou do amigo Gunga se confundia com a invenção do menino. E enquanto chorava o pranto ensaiado para comover os compradores, contava ora sobre a surra que havia levado da mãe, ora pela mercadoria que estava ficando encalhada (e ele precisava retornar para casa com um bom resultado de venda), ou ainda, pelo dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior... E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia se descobrindo realmente triste, tão triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-coração menino.


EVARISTO, Conceição. Lumbiá. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. 1. ed. 21. reimp. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 81-86.


— Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. Vivo implicando com as novelas de minha mãe. Entretanto, sei que ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe que a verdade da telinha é a da ficção. Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras bocas. Lidinha e Biunda tiveram filhos também, meninas. Biunda tem o leite escasso, Lidinha trabalha o dia inteiro. Elas trazem as menininhas para eu alimentar. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...


EVARISTO, Conceição. A gente combinamos de não morrer. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. 1. ed. 21. reimp. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 99-109.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Citação de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley


Os livros e o barulho intenso, as flores e os choques elétricos - na mente infantil esses pares já estavam ligados de forma comprometedora; ao cabo de duzentas repetições da mesma lição, ou de outra parecida, estariam casados indissoluvelmente. O que o homem uniu, a natureza é incapaz de separar.
- Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam de ódio "instintivo" aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânica por toda a vida - o diretor voltou-se para as enfermeiras. - Podem leva-las.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2014. p. 40.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Citação de A revolta dos meninos, descoberto Freire


Andando na larga e longa avenida, ele espiava os prédios, as pessoas, as lojas, os bares, os carros, os ônibus, o céu. Nossa, como o mundo era grande! Mas ele estava sozinho naquele mundaréu sem fim. E se sentiu pequenino, tão pequenino como uma formiga, que era o menor bicho que ele conhecia. Logo se lembrou da melodia do velho cantor e tentou assobiar. Ela saiu, perfeita, inteira. Começou de novo... e ela saiu mais uma vez prefeita! A emoção que o invadiu foi forte demais. Tudo se agitava dentro dele e uma coisa muito intensa aconteceu. Ele passou a mão pelo rosto e o sentiu molhado. Eram lágrimas! Enfim, ele tinha conseguido chorar! Pela primeira vez na vida. E ficou assobiando sem parar, mas as lágrimas logo secaram. João Pão se sentia novo. Muito mais forte e pronto para outra.

FREIRE, Roberto. A revolta dos meninos: as aventuras de João Pão, um menor abandonado. São Paulo: Moderna, 1994. (Coleção Veredas). p. 85-86.