segunda-feira, 27 de maio de 2024

Citação de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves


 

Tive a ideia de fazer este relato três dias antes da partida, quando pedi a ajuda da Geninha e mandei comprar papel. O que eu imaginava ser uma carta de dez, doze páginas, porque sabia que não viveria até te encontrar, já se transformou em tantas que nem temos coragem ou tempo para contar, colocadas em uma pilha enorme aqui ao lado da minha cama. Sorte que percebemos isso ainda antes de embarcar, quando então mandei comprar mais papel, muito mais, a Geninha acaba de me avisar que nem foi tão exagerado quanto imaginamos a princípio. Passando os dias dentro desta cabine, ditando o que ela vai escrevendo, somente agora, no final da viagem, é que começo a pensar no que significa voltar ao Brasil, embora eu nada vá ver dos lugares dos quais ainda me lembro. A Geninha verá por mim, e também fica encarregada de fazer com que tudo isto chegue às suas mãos, e sei que ela o fará, mesmo tendo pistas que, de tão velhas, podem não ser de grande ajuda. Mas antes de falar disso, tenho que te contar o que me levou a fazer essa viagem em tais condições, e preciso voltar àqueles últimos dias de um mil oitocentos e sessenta e cinco, quando seus irmãos embarcaram para Paris, deixando-me sozinha em Lagos. Não que eu esteja me queixando, mas acho que eles nunca deram muito valor ao meu sacrifício, ao quanto foi penoso deixar que partissem depois de ter perdido todos os outros filhos.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 34. ed. Rio de Janeiro: Record, 2023. p. 912.

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