Vai abaixo o discurso de uma das personalidades que, pelo que conheço no momento, mais admiro.
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| Eduardo Portella |
A honra da escolha e o profundo contentamento pela
convivência que se inicia em caráter permanente não nos autoriza, de maneira
alguma, a ceder à tentação autobiográfica. Temos diante de nós os nomes, os
temas, as lições, que identificam o próprio traçado assimétrico da modernidade
brasileira. Eles, os titulares da Cadeira nº 27 desta Casa de Machado de Assis,
falaram por nós. As suas palavras continuam conosco, precisamente porque, entre
a constatação e a antevisão, souberam caminhar fazendo o caminho.
As marcas que a Cadeira nº 27 traz, na sua alma e no seu
corpo, deixam que se destaquem, emblematicamente, a consciência pública e o
compromisso da participação. Os homens podem equivocar-se; jamais evadir-se -
uma verdade que se fez legenda no roteiro trepidante que vai de Joaquim Nabuco,
o fundador, a Octávio de Faria, o mais recente ocupante, a quem pertence
primordialmente esta noite.
Joaquim Nabuco (1849-1910) escolheu como patrono da Cadeira
a personalidade prismática do seu conterrâneo Maciel Monteiro (1804-1868);
encarnação fidedigna da mitologia romântica, precocemente cindida entre o
trabalho e o lazer, a cumplicidade e a recusa, que o dandismo literário por ele
cultivado conseguiu representar nos termos do protocolo burguês então vigente.
A cisão, mesmo aqui, não dispensou a participação.
Mas é com Joaquim Nabuco que se potencializa e predominará,
em meio a inevitáveis variações de temperatura, o clima liberalizante que tanto
contribuiria para configurar o perfil maior da cultura brasileira, a uma só vez
contrastiva e confluente. Aqui nesta Casa, Nabuco definiu “o espírito público”
como pré-requisito para o exercício superior da “política” e como aliado
“inseparável de todas as grandes obras”. A sua flama libertária, imune ao
fanatismo, jamais se esgotaria na destemida e memorável campanha abolicionista
porque se ampliará, infatigável e sempre mais resoluta, no interior do
humanismo operativo, que ele conduziu objetivamente, pragmaticamente - antes ao
modo britânico que francês –, por cima de toda a retórica dominante.
Nabuco era o “intelectual orgânico” de sua classe, que não
vacilou em atravessar o grande rio da consciência política, ou humana, para, na
outra margem, denunciar as imposturas sociais, institucionalizadas e protegidas
pela elite do poder. Mesmo que lhe custasse a incompreensão, o murmúrio
furtivo, o isolamento; ou contra ele se levantasse a ira ou a insanidade dos
imobilistas, naquele registro, altissonante e histérico, que fez um dia a
glória melodramática de um pequeno teatro fraudulento, e hoje se resume na
mímica dissoluta de uma farsa malograda. Nabuco é todo o contrário desse
cerimonial insincero por intermédio do qual a pseudointelectualidade explode a
sua cólera. Nabuco praticou a tolerância, e com ela adquiriu a prerrogativa de
conceituá-la no seu insuperável Minha Formação: “a intolerância - diz ele - é
uma fobia da liberdade e do mundo; é um fenômeno de retração intelectual”.
Sabia ele que só o dinamismo crítico e a mobilidade social, reciprocamente
articulados, constituem traços identificadores da ação interativa consequente.
Nabuco é o “intelectual orgânico” cuja bússola política movimenta-se norteada
por indicações éticas. Com ela, chega ele à cena pública e, acompanhado por
ela, sabia retirar-se nos momentos oportunos, sem conceder o que não se
concede, sem trair, sem falsificar. O vigor moral do seu discurso não deixa
dúvida quanto à lisura e à honradez das relações matinais entre o intelectual e
o poder no Brasil. É que para o antiáulico Nabuco, o político eticamente
respaldado, o escritor livre, o poder constitui um valor transitivo, tanto mais
necessário quanto mais se fizer sinônimo de serventia pública.
O estatuto político de Joaquim Nabuco aponta-nos o homem
como um ser necessariamente social, interpessoal, o eu mais o outro, mediado
pelo respeito recíproco. O homem não é senão convivência, na mesma medida em
que toda convivência nasce e cresce sob a égide do consenso. Mas para que os
canais do consenso mantenham-se desobstruídos, abertos, produtivos, a política
não pode abrir mão da imprescindível cobertura ética, uma vez que, privada
desse suporte, logo se degeneraria numa trama mesquinha, vazia de densidade
histórica porque destituída de substância humana. Foi daí que Nabuco, ele que
trazia consigo o sentido da grandeza, pôde, antecipadamente, pensar a nação no
seu voo universalizante.
Os sucessores de Joaquim Nabuco, Dantas Barreto (1850-1931)
e Gregório Fonseca (1875-1934), cada qual ao seu feitio, preservaram os
atributos da Cadeira nº 27, especialmente na linha imperturbável da
participação pública. Inscrevem-se eles numa moldura clássica, em que as armas
e as letras se entendem como que orgulhosamente: em qualquer hipótese,
cordialmente.
Mantém-se e prossegue o corte emblemático da Cadeira. E
agora, no centro de nossas perplexidades institucionais, emerge a figura de
Levy Carneiro (1882-1971) - o intelectual sensível, o advogado combativo, o
jurisconsulto competente. O Estado de direito revigora-se, e o papel da
sociedade civil vê-se reconhecido para além das decisões voluntaristas dos
mandarins eventuais. A força motriz da ética mais uma vez se faz presente. Não
a ética traiçoeira das vestais, porém aquela outra, verdadeira, legitimada por
relações idôneas, porque livres e respeitosas. Dentro desse espaço confiável, a
moral, enraizada, alarga e multiplica o universo jurídico. A lição do seu
mestre Rui Barbosa é levada adiante e, atenta às palpitações comunitárias,
desbloqueada e atuante, imediatamente se define e solidamente se afirma como
esteio consensual do Estado de direito.
Esta é a Cadeira a que chegou Octávio de Faria, no dia 6 de
junho de 1972. Aqui estamos para consignar o nosso tributo, por tudo o que
representa a sua obra inconformista, a narrativa inesgotável da Tragédia
Burguesa, sedimentada no percurso coerente, porém sofrido, que une Mundos
Mortos a Pássaro Oculto. O enigma do homem é o tema central, seja na visão
imediata das relações interpessoais, seja na antevisão sobrenatural; quando o
choque, explícito ou implícito, entre o bem e o mal, que é encontro e é revelado,
desenha a silhueta partida da tragédia.
Octávio de Faria começou por impugnar as falsificações
semânticas da modernidade, responsáveis pela banalização das paixões
libertárias, igualitárias e fraternas. Reduzidas a meras etiquetas vazias, elas
estariam extraviadas na “Desordem do Mundo Moderno”, tese apresentada ao Centro
de Estudos Jurídicos e Sociais, em 1930, e que se constitui em uma espécie de
plano-piloto, particularmente de sua ensaística. É que o fim da Primeira Grande
Guerra desmistifica um conjunto de crenças abstratas que tornaram risonha e
bela aquela época dourada: a certeza olímpica que os triunfalistas exibiam sem
o menor pudor ou a mais leve consternação. De qualquer modo, as promessas e as
fantasias da cidade liberal burguesa chegavam àqueles anos inquietos
acompanhadas dos primeiros sintomas de descrença. O Octávio de Faria ensaísta,
reunido em Maquiavel e o Brasil (1931), Destino do Socialismo (1933), Cristo e
César (1937), lança um brado de revolta contra o liberalismo crepuscular. E,
como tantos dos seus companheiros de geração que, insatisfeitos e perdidos,
foram buscar, generosamente, nas mais diversas latitudes ideológicas, a saída,
o caminho, ele também abriu um ilimitado crédito de confiança ideológico. O
pessimismo spengleriano, oráculo da decadência, compêndio inoportuno da
crisologia, exerce uma influência disseminada. Em meio ao nevoeiro dos anos de
1920 e 1930, o esforço obstinado de superação do imobilismo impunha-se como um
ato de bravura cívica. Octávio de Faria não se furta ao risco e, cada vez mais
com a ajuda de Deus, e já não do Anticristo, assume o viver perigosamente. Leva
consigo quase todas as contradições, que não o diminuíram porque o
multiplicaram - aquela intermitente guerra interior. Ele é o seu personagem mais
trágico, porque poderia dizer ou gritar o seu grito recluso: carrego comigo a
minha guerra.
Cresce, pelas mãos de Octávio de Faria, uma “literatura
problemática”, que ultrapassa os limites cronológicos por ele mesmo
estipulados. Os adolescentes desatinados de Mundos Mortos estão antes submersos
no ocaso do capitalismo liberal, quando César põe e Cristo já não dispõe. A
burguesia, que em O Anjo de Pedra “matava o indivíduo”, passaria a liquidar a
individualidade. O modelo tecnocrático começa a mostrar as suas garras afiadas
no frágil amanhecer da industrialização no Brasil. E o romancista, entre
desolado e combativo, tenta resistir à derrocada do “espírito” nas malhas da
razão instrumental. Otávio de Faria jamais foi um contemplativo, incapaz de
manter o equilíbrio necessário entre a missa e a missão.
No planejamento romanesco de Octávio de Faria, na medida em
que a obra se precede, pressupõe o seu itinerário, poderíamos deplorar um certo
mecanicismo, expresso em um cronograma obedientemente cumprido. Mas a suposição
imediatamente se desfaz. O impulso gestaltista vê-se dirigido pela vida interna
do romance. A personagem Ângela sai das páginas de Ângela ou as Areias do Mundo
para, investida de inesperado encargo, dar origem ao A Sombra de Deus. É o
romance se fazendo, a vida livre dos personagens, e não a elaboração fria e
artificiosa.
O caráter reflexivo do romance de Octávio de Faria induziu a
crítica compartimentalista, aquela que se compraz sem separar os níveis
descêntricos de qualquer produção artística, a uma denegação. Apoiada num
anacronismo retórico, empenha-se em prolongar os modelos estáveis ou
didaticamente institucionalizados, sem prever que todo aquele que ignorar a
simultaneidade dos gêneros e não souber saltar as fronteiras imaginárias do romanesco
estará condenado à tarefa inútil de perseguir a imagem coesa de um mundo
visivelmente dilacerado. Os heróis problemáticos da Tragédia Burguesa, que um
dia perderam a paz e jamais ganharão a guerra, são registros da
desestabilização histórica, desdobrada numa poética avessa às classificações
absolutistas. Só o romance-ensaio, que Octávio de Faria conduziu crivado por
tantas incompreensões, está em condições de expressar o escândalo e a desolação
da burguesia, a quem faltou a verdade bem antes de ter faltado a vergonha.
No espaço aristocrático-burguês, o homem se transformou em
um colecionador de perdas. Primeiro a perda do paraíso, que Milton descreveu
com uma inaceitável resignação; depois veio a perda das ilusões, que Balzac
fotografou com a correspondente exasperação; estamos agora ameaçados de perder
a linguagem, por instância da emergente cultura da violência. Sem o paraíso,
sem as ilusões, sem a linguagem, o que restará do homem? O que podemos esperar
dessa entidade sonâmbula, afogada em sua própria tragédia? Octávio de Faria
abriu os olhos com tanta vontade que viu tudo isso de uma só vez. E, porque
viu, indignou-se para sempre. O indignado está tão próximo de Deus quanto
deliberadamente longe do indigno, esta ilha sinistra onde o mal é a lei e a fronteira.
Podemos entender por que o romance “O Indigno - segundo nos adverte o autor -
não tem por substrato senão um personagem, naturalmente invisível: o demônio,
isto é, o diabo”. A ordem deixou de ser uma alternativa terrena, e o Deus da
encruzilhada surpreende-se investido de obrigações adicionais, ao longo do
romance ou das esquinas de Ivo, Branco, Pedro Borges, Padre Luís. O desempenho
do mal é mais do que impositivo: é tirânico.
Agora a narrativa de Octávio de Faria, cíclica e
ciclotímica, resvala numa curva descendente. O desânimo e o desamor parecem
perguntar: onde estava o seu Deus, que tudo permitiu? Terá morrido, conforme o
vaticínio implacável de Zaratrusta? Não. Octávio de Faria crê e confia. A
esperança é a sua companheira de viagem. E quando a distensão ideológica
permite a descontração cênica dos personagens, a façanha liberalizante avança,
para configurar o mundo excitado e excêntrico, vário e prospectivo. Ao longe, é
possível divisar a imagem catolicamente familiar do guardião da esperança. O
infortúnio social como que encontra a redenção. E, nesse instante, fugaz e
eterno, Cristo pode mais do que César. É a hora em que o romancista,
unamunianamente agônico, desaparecido no cerne da comprovação e ressuscitado
nos braços da fé, faz do descarte ideológico a salvação e do sofrimento a
criação. Um Lázaro moderno, que recuperasse a vida para a sofrer ainda mais.
O romancista não necessita ser um pregador. A sedução do
ideário teológico ronda a sua porta sem obter a permissão do ingresso. “Um autêntico
romance - afirma Octávio de Faria - não deve ser 'católico', isto é, visar a
fazer moral católica - que é matéria dos manuais de apologética”. O escritor
exorcizou os fantasmas do proselitismo, num gesto de instauração da liberdade -
da liberdade autêntica, conquista cotidiana, para além da liberdade mitológica,
que recolhemos mitologicamente no seio do absolutismo. A dor da existência hoje
consiste, em grande parte, em ter de abandonar o mito da verdade absoluta.
É fácil perceber como a ilusão ideológica vai cedendo
progressivamente à construção literária. O acontecimento poético, como o
acontecimento humano, não cabe em nenhum recinto formal. Cofluente e
legionário, projeta a literatura como manifestação plural, preferindo dizer: o
que a ideologia desfez, a arte refez. Esta é também uma denúncia do gênero como
a forma perecível da literatura transcendental. Octávio de Faria, estranho
conviva da linha do horizonte, soube compor um texto em que as espécies se
aproximam, mas em função de uma nova vida. O gênero é muito menos do que a
linguagem; porque o primeiro deixa-se conduzir pela submissão, e a segunda
somente consegue viver porque sustenta de pé o sentido da liberdade. Foi a
linguagem que baniu o decorativo em nome do decoro e afastou a estilização para
dar curso ao estilo; identificável em todos os quadrantes do seu fazer: na
narrativa romanesca, no ensaio político ou literário, na crítica
cinematográfica ou na crônica esportiva.
Na sua Autocrítica, uma das páginas mais elevadas de nossa
história literária, Octávio de Faria se reconhece como “uma absorção contínua e
ardente de todos os extremos do pensamento”. E os extremos do pensamento são os
seus desvios ideológicos, na extensão que se alonga do impasse do poder à crise
da revelação. A máscara ideológica aponta, imperceptivelmente, para a
violência, individual ou coletiva, num esquema de intolerável servidão. Porque
a violência, mais do que o malogro comunicativo, é a sombra da história que,
obsessiva e compulsiva, subjuga e domina o interesse emancipatório da espécie
humana.
Desde a virada iluminista que os papéis se alternam, mas o
quadro continua o mesmo. Permanecem os mecanismos de sacralização, embora
perfazendo um circuito fechado que sai de Deus para chegar à Razão. E a todo
instante confunde-se razão humana com razão burguesa, no cerimonial predatório
da tragédia moderna; que outra coisa não é senão a percepção da opacidade, que
invade a classe burguesa ao tomar conhecimento, por intermédio do seu núcleo
intelectual, do engano em que incorrera ao imaginar-se proprietária exclusiva
da universalidade, árbitro supremo do igualitarismo. Os renegados de Octávio de
Faria carregam, pelos caminhos do mundo, essa ferida aberta.
Na sociedade antes de massa que de classe, o eixo das
tensões é deslocado dos confrontos classistas para os conflitos que se debatem
no interior da condição humana ou se exasperam nos transportes coletivos. Era
perfeitamente previsível que o último capítulo da tragédia, na época
planetária, fosse um ato de força hiperideológico, consequência não de uma coalizão
cultural, mas de uma colisão tecnocrática, da qual o homem consegue sobreviver
amputado, sem alternativa porque sem história. Mas é exatamente nesse
minuto-limite quando o trágico recupera a sua positividade e promove a luta sem
quartel contra a patologia do tempo. A tragédia moderna, em vez de ser o
mausoléu de todos os sonhos extraviados, ergue-se e dilata “agonicamente” o
nosso próprio horizonte existencial. Como se a partir do bloqueio, ou do choque
representado em Os Caminhos da Vida, começássemos a superar o impasse.
Somos levados, com a licença e o perdão de Octávio de Faria,
a imaginar uma inesperada contracena, montada por Charlie Chaplin e Léon Bloy,
em que os dois, a quatro mãos, terminariam por fornecer, pelo menos, o roteiro
do interminável longa-metragem dos “tempos modernos”, profano e nostalgicamente
confessional, solitário e solidário a uma só vez.
Estaríamos imersos em plena utopia? Talvez sim e talvez não.
De qualquer maneira, evitamos aqui chegar para derramar as nossas últimas
lágrimas diante da tragédia burguesa. O que desejamos é simplesmente empreender
uma constatação prospectiva. A utopia concreta, o ainda-não, o possível,
constituem mola propulsora do curso do tempo.
Mas é este o tipo de reflexão para ser levado a efeito no
auditório da Academia? A resposta é uma só: sem dúvida alguma. À Academia não
se ingressa para encerrar a jornada, ou apenas esfolhar um simpático catálogo
de rememorações. À Academia se chega para prosseguir, para recomeçar até. Aqui
nos ocupamos da língua, entendida como a codificação vitalizada do acontecer
humano, e dedicamos a nossa especial atenção para as linguagens, a
produtividade cultural, movimentada criadoramente na estrutura das formações
simbólicas. Por isso a sua legitimidade advém da tradição, e a vida futura e
presente da nação.
Na Casa de Machado de Assis o intelectual, depositário do
acontecido e agente do acontecer, sente-se em casa. Jamais como quem absorve
placidamente o repouso residencial, e sim como quem elabora, tenazmente,
laboriosamente, a sua agenda do amanhã. Porque o intelectual, o trabalhador
intelectual, é a ponte sólida que liga e mistura o homo sapiens ao homo faber,
sem prescindir da valiosa cooperação do homo ludens. O seu oposto, a imagem
decrépita e residual da “torre de marfim”, de há muito se inscreveu, fazendo
jus a um lugar de destaque, entre as grandes contrafações da história da
cultura. O intelectual sacralizado, na figura do profeta ou do prestidigitador,
foi pelo menos uma insensatez inaceitável, gerando uma aleatoridade, que o
incompatibilizou com o poder. Falhou ele ou falhou o poder? Falharam os dois,
certamente. A pura e simplória condenação do poder, querendo ser uma postura
heroica, não passa de um recurso demagógico, completamente destituído de vigor
crítico. Do mesmo modo que o poder, definido como criação, e não apenas
produção, terá de incorporar a participação intelectual, tanto mais consequente
quanto mais desinibidamente crítica.
O crítico é aquele que busca a compreensão rigorosa dos
fenômenos, das ocorrências, das ideias, sem desvirtuar-se no contestador
intransigente ou no opositor inveterado. Nesta impressão linear da crítica, o
que costuma estar presente é a ingenuidade ou a mera explosão temperamental,
gerando o contrapoder, exibicionista e ocioso. Porque toda a crítica que
radicasse o seu trabalho no confisco ou na delação, além de desatender aos seus
deveres técnicos, mergulharia num imperdoável niilismo; e o crítico, tão
impotente quanto ressentido, jamais conseguiria ultrapassar a faixa de um satelitismo
irreversível. A sua efêmera luminosidade adviria dos pequenos jatos de luz
vazados do planeta ao qual se opõe - e porque apenas se opõe, vive de opor-se.
Esta síndrome da crítica militante passa ao largo do poder e do saber. Mesmo
considerando que cada um deles - e aí reside um fator de pujança - dispõe de
mil e uma faces.
O poder é pedagógico. Ensina e forma. Deforma quando se
expõe com um poder vazio de saber. O saber reforça o poder para ganhar, nessa
troca incessante, os instrumentos de circulação e consumo do fato cultural. É
inconcebível hoje pensar-se o fazer público por meio da condenação ou da
rejeição - frequentemente ilusória - da economia do poder. Cabe, isto sim,
resgatá-la socialmente.
Esta Cadeira se afirmou, no rumo de Joaquim Nabuco e Octávio
de Faria, como um lugar superior da convivência. Os homens que aqui estiveram
sabiam ser, exemplarmente, seres conviventes. E a capacidade de conviver, na
medida em que venha a combinar, harmoniosamente, o trabalho, a interação e o
poder, conseguirá, decorrentemente, livremente, assegurar os níveis de
preservação e desenvolvimento da humanidade. E se constituirá em traço
identificador da própria condição humana. É por tudo isso que somente os
verdadeiros cultores do convívio, desse intercâmbio multiplicador, estão aptos
para falar e enfrentar o desafio humano.
A história dos nossos dias, agora mais do que nunca, tem a
obrigação de substituir o prazer enfermo da dissolução pela competência do
conviver. Pela sabedoria do viver com. Ao lado dos conviventes, e impulsionados
pela saudável energia da convivência, imunes portanto ao veneno da violência,
haveremos de construir o amanhã do encontro.
18/8/1981
BIOGRAFIA de Eduardo Portella
Fonte: Academia Brasileira de Letras - http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=482&sid=273

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