quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um "Banquete"


Afirmo, portanto, que por três causas a presença torna a pessoa de menor valor do que realmente possui. Uma é a puerilidade, não de idade, mas de ânimo; a segunda é a inveja - e estas residem naquele que julga; a terceira é a imperfeição humana que reside naquele que é julgado [grifo meu].

A primeira pode ser assim brevemente desenvolvida. A maior parte dos homens vive segundo os sentidos e não segundo a razão, ao modo de crianças. Esses não conhecem as coisas senão superficialmente por seu exterior e sua bondade, ordenada a específico fim, não a captam, porquanto isso veem antes tudo aquilo que podem e julgam sendo seu modo de ver. E como, por ter ouvido, se formam uma vaga ideia da fama de outrem, em cuja presença discorda com o perfeito juízo que não segundo a razão mas somente segundo os sentidos julgam, considerando quase mentira aquilo que antes haviam ouvido e passam a desprezar a pessoa que antes admiravam. Por isso, segundo esses, que são infelizmente quase todos, a presença restringe tanto o prestígio quanto a má fama. Essas passam logo da fome à saciedade, muitas vezes estão alegres e muitas vezes tristes com efêmeras alegrias e tristezas, passam logo de amigos para inimigos, fazendo tudo como crianças, sem uso da razão.

A segunda se constata por estas razões. Igualdade de condições naqueles que têm vícios é a causa da inveja, e inveja é a causa do mau juízo, mas que não deixa a razão argumentar sobre a coisa invejada  e o poder do julgador é então aquele juiz que ouve somente uma das partes. Por isso, quando esses veem a pessoa famosa, tornam-se imediatamente invejosos porquanto se consideram membros iguais e de igual poder, temendo, por causa da excelência desse, serem menos prestigiados. E esses, vencidos pela paixão, não somente julgam mal, mas, difamando, levam os outros a julgar mal. Por isso nesses a presença restringe o bem e o mal em cada um que se apresenta Digo o mal porque, encontrado prazer em fazer o mal, provocam a inveja daqueles que fazem mal [interessante essa ideia].

A terceira é a imperfeição humana, da parte daquele que é julgado, que não deixa de ser familiar e muito comentada. Como evidência desta, sobe-se que o homem é de muitas formas maculado e, como diz Santo Agostinho, "ninguém está sem mácula". Quando o homem é maculado por uma paixão, à qual por vezes não consegue resistir; quando é maculado por alguma deformidade num membro; quando é maculado por algum golpe do destino; quando é maculado pela má fama de parentes ou de alguém próximo a ele; essa coisas não são levadas pela fama, mas pela presença e vêm à tona com o frequentar-se. Essas máculas lançam alguma sombra sobre a clareza da bondade, de tal modo que a fazem parecer menos clara e menos valiosa. E é por isso que todo profeta é menos prestigiado em sua pátria; é por isso que o homem bom deve mostrar-se com sua presença a poucos e permitir menos ainda a familiaridade, a fim da que seu nome seja conhecido, mas não desprezado [tenho algumas oposições quanto a isso ser ou não necessário hoje em dia]. Essa proposição pode ser configurar-se tanto no mal quanto no bem [ah!], se os termos da questão forem invertidos. Pode-se observar com toda a evidência que por imperfeição, sem a qual não há ninguém, a presença restringe o bem e o mal em cada um para além dos limites da verdade.

Por isso, como disse antes, pelo fato de ter-me apresentado a quase todos os itálicos, acabei por tornar-me mais vil talvez do que correspondesse à verdade, não somente para aqueles aos quais minha fama já tinha chegado, mas também aos outros e, por conseguinte, todas as coisas que dizem respeito a mim, sem dúvida, juntamente foram comigo depreciadas.

ALIGHIERI, Dante. Banquete. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, [200?]. p. 22-23.

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